VISÕES DE ANNA CATHARINA EMMERICH, Visões Beata Anna Catharina Emmerich


Beata Anna Catharina Emmerich        Preparação para a Ceia Pascal.

(Quinta-feira Santa, 13 de Nisan ou 29 de Março; Jesus na idade de 33 anos, 18 semanas menos 1 dia)

         Foi ontem à noite que se efetuou em Betânia e a última e grande refeição de Nosso Senhor e dos seus amigos, em casa de Simão, curado da lepra por Jesus e durante a qual Maria Madalena ungiu Jesus pela última vez. Judas, indignado com isso, correu a Jerusalém, onde negociou ainda uma vez com os príncipes dos sacerdotes, para entregar-lhes Jesus. Depois da refeição, voltou Jesus à casa de Lázaro e uma parte dos discípulos dirigiram-se à albergaria, situada fora de Betânia. Nicodemos veio ainda de noite à casa de Lázaro, onde teve longa conversa com o Senhor; voltou a Jerusalém antes do amanhecer, acompanhado numa parte do caminho por Lázaro.
        
Os discípulos já tinham perguntado a Jesus onde queria comer o cordeiro pascal. Hoje, antes da madrugada, Nosso Senhor mandou vir Pedro e João e falou-lhes muito de tudo que deviam comprar e preparar em Jerusalém; disse-lhes que, subindo o monte Sião, encontrariam um homem com um jarro de água. (Eles já conheciam esse homem, pois fora quem já na última Páscoa, em Betânia, preparara a ceia de Jesus; por isso diz S. Mateus: um certo homem). Deviam segui-lo até a casa em que morava e dizer-lhe: “ O Mestre manda avisar-te que seu tempo está perto e que quer celebrar a Páscoa em tua casa”. Deviam pedir que lhes mostrasse o Cenáculo que já estaria preparado e fazer-lhe depois todos os preparativos necessários.
        
Vi os dois Apóstolos subirem a Jerusalém, seguindo um barranco ao Sul do Templo e subirem ao monte Sião pelo lado setentrional. Ao lado Sul do monte do Templo havia algumas fileiras de casas; seguiram um caminho que passava em frente destas casas, ao longo de um ribeiro, que corria no fundo do barranco e os separava das casas. Tendo chegado à altura de Sião, que é mais alto do que o monte do Templo, dirigiram-se a um largo um pouco em declive, na vizinhança de um velho edifício, cercado de pátios; ali, no largo, encontraram o homem que lhes fora indicado, seguiram-no e perto da casa lhe disseram o que Jesus lhes ordenara.

Ele se regozijou muito de os ver e, ouvindo o recado, respondeu-lhes que a refeição já lhe tinha sido encomendada (provavelmente por Nicodemos), sem que soubesse para quem era, mas que muito lhe agradava saber que era para Jesus. Esse homem era Elí, cunhado de Zacarias de Hebron, o mesmo em cuja casa Jesus anunciara, no ano anterior, em Hebron, a morte de S. João Batista. Tinha só um filho, que era Levita e amigo de Lucas, antes deste se juntar a Jesus, anunciara, no ano anterior, em Hebron, a norte de S. João Batista. Tinha só um filho, que era Levita e amigo de Lucas, antes deste se juntar a Jesus, e além desse, também 5 filhas solteiras. Todos os anos ia com os criados à festa e, alugando uma sala, preparava a Páscoa para as pessoas que não tinham casa em Jerusalém. Neste ano tinha alugado um cenáculo, pertencente a Nicodemos e José de Arimatéia. Mostrou aos dois Apóstolos a sala e o arranjo interior.
           

O Cenáculo ou Casa da Ceia


         Ao lado sul do monte Sião, perto do castelo abandonado de Davi e do mercado situado na subida, à leste desse castelo, se acha um velho e sólido edifício, entre duas fileiras de árvores copadas e no meio de um pátio espaçoso, cercado de muros fortes. A direita e à esquerda da entrada há ainda outras construções encostadas ao murro: à direita a habitação do mordomo e, perto desta, outra à qual Nossa Senhora e as santas mulheres às vezes se retiravam, depois da morte de Nosso Senhor. O Cenáculo, antigamente mais espaçoso, servira de morada aos bravos capitães de Davi, que ali se exercitavam no manejo das armas; também estivera ali por algum tempo a Arca da Aliança antes da construção do Templo e ainda há indícios de sua estrada num subterrâneo da casa. Vi também uma vez o profeta Malaquias escondido nos mesmos subterrâneos, onde escreveu as profecias acerca da sagrada Escritura e do sacrifício do Novo Testamento. Salomão tinha também esta casa em muito respeito, por certa relação simbólica, a qual, porém, esqueci. Quando grande parte de Jerusalém foi destruída pelos Babilônicos, ficou salva essa casa, a respeito da qual tenho visto muitas outras coisas, mas lembro-me só do que acabo de contar.
        
O edifício estava meio arruinado, quando se tornou propriedade de Nicodemos e José de Arimatéia, que restauraram a casa principal e acomodaram-na bem, para a celebração da festa da Páscoa, fim para o qual costumavam alugá-la a forasteiros, como fizeram também na última Páscoa do Senhor. Além disso, serviam-lhes a casa e os pátios de armazém para monumentos sepulcrais e pedras de construção, como também de oficina para os operários, pois José de Arimatéia possuía excelentes pedreiras nas suas terras e negociava em pedras sepulcrais e variadíssimas colunas e capitéis, esculpidos sob sua direção. Nicodemos trabalhava muito como construtor e, nas horas vagas, gostava de ocupar-se também com a escultura, fora da época das festas, esculpia estátuas e monumentos de pedra, na sala ou no subterrâneo debaixo desta. Essa arte pusera-o em contato com José de Arimatéia; tornaram-se amigos e muitas vezes se associaram também nas empresas.
        
Nessa manhã, enquanto Pedro e João, enviados de Betânia por Jesus, conversavam com o homem que tinha alugado o Cenáculo para aquele ano, vi Nicodemos indo para além e para aquém das casas à esquerda do pátio, para onde tinham sido transportadas muitas pedras, que impediam as entradas da sala do Cenáculo. Havia uma semana, eu vira algumas pessoas ocupadas em pôr as pedras ao lado, em limpar o pátio e preparar o Cenáculo para a celebração da Páscoa; julgo até ter visto, entre outros, alguns discípulos de Jesus, talvez Aram e Temeni, sobrinhos de José de Arimatéia.

         A casa principal, o Cenáculo propriamente dito, está quase no meio do pátio, um pouco para o fundo. É um quadrilátero comprido, cercado por uma arcada menos alta de colunas, a qual, afastados os biombos entre pilares, pode ser unida à grande sala interior; pois todo o edifício é aberto de lado a lado e pousa sobre colunas e pilares; apenas estão as passagens fechadas ordinariamente por biombos. A luz entra por aberturas existentes no alto das paredes. Na parte estreita da frente, há um vestíbulo, ao qual conduzem três entradas; depois se entra na grande sala interior, alta e com bom assoalho lajeado; do teto pendem diversas lâmpadas; as paredes estão ornadas para a festa, até meia altura, com belas esteiras e tapetes e no teto há uma abertura coberta com um tecido brilhante, transparente, semelhante à gaze azul.
        
         O fundo da sala está separado do resto por uma cortina igual. Essa divisão do Cenáculo em três partes dá-lhe uma semelhança com o Templo; há também um adro, o santo e o santo dos santos. Nesta última parte é que são guardados, à direita e à esquerda, as vestimentas e vários utensílios. No meio há uma espécie de altar. Sai da parede, um banco de pedra com a ponta cortada no meio das duas faces laterais; deve ser a parte superior do forno, no qual o cordeiro pascal é assado; pois hoje, durante a refeição, estavam os degraus em roda muito quentes. Ao lado dessa parte do Cenáculo, há uma porta, que dá para o alpendre que fica atrás da pedra saliente; de lá é que se desce ao lugar onde se acende o fogo no forno; há ali ainda outros subterrâneos e adegas, debaixo da grande sala.

Naquela pedra ou altar saliente da parede há várias divisões, semelhantes a caixas ou gavetas, que se podem tirar; em cima há também aberturas como de uma grelha, uma abertura também para fazer fogo e outra para apagá-lo. Não sei mais descrever exatamente tudo que ali vi, parece ter sido um forno para cozer o pão ázimo da Páscoa e outros bolos ou também para queimar incenso ou certos restos das refeições da festa; é como uma cozinha pascal. Por cima dele, vi a figura de um cordeiro pascal; tinha cravado na garganta uma faca e o sangue parecia cair gota a gota sobre o altar; não sei mais exatamente como era feito. Dentro do nicho da parede há três armários de diversas cores, os quais se fazem girar como os nossos tabernáculos, para se abrirem e fecharem. Neles vi todas as espécies de vasos para a Páscoa, taças e mais tarde também o SS. Sacramento.
        
Nas salas laterais do Cenáculo há assentos ou leitos em plano inclinado, feitos de alvenaria, sobre os quais se acham mantas grossas enroladas; são leitos de dormir. Debaixo de todo o edifício há belas adegas; antigamente esteve ali no fundo a Arca da Aliança, onde, em seguida, foi construído o forno pascal. Debaixo da casa há cinco esgotos, que levam todas as águas e imundícies monte abaixo, pois a casa está situada no alto. Já antes vi Jesus curar e ensinar aqui; às vezes passavam alguns discípulos à noite nas salas laterais.


Disposições para a refeição pascal


         Tendo os Apóstolos falado com Helí de Hebron, voltou este pátio da casa; eles, porém, se dirigiram para a direita, a Sião, desceram pelo lado norte, passaram uma ponte e, seguindo por veredas ladeadas de sebes verdejantes, foram pelo outro lado do barranco, até às fileiras de casas ao sul do Templo. Ali era a casa do velho Simeão, que morrera depois da apresentação de Jesus no Templo.
Moravam então lá os filhos do venerando ancião; alguns eram secretamente discípulos de Jesus. Os Apóstolos falaram a um deles, que era empregado no Templo; era homem alto e muito moreno. Ele desceu com os Apóstolos, passando a leste do Templo, por aquela parte de Ophel pela qual Jesus entrara triunfalmente em Jerusalém, no domingo de Ramos; assim foram pela cidade, ao norte do Templo, até o Mercado de gado. Vi na parte meridional do mercado pequenos recintos, onde belos cordeiros saltavam como em pequenos jardins.
        
Na entrada triunfal de Jesus pensei que isso fora feito para abrilhantar a festa; mas eram cordeiros pascais, que se vendiam ali. Vi o filho de Simeão entrar num desses recintos; os cordeiros seguiram-no, saltando, e empurravam-no com as cabeças, como se o conhecessem. Ele escolheu quatro, que foram levados ao Cenáculo. Vi-o também de tarde no Cenáculo, ajudando na preparação do cordeiro pascal.
        
Vi como Pedro e João deram ainda vários recados na cidade, encomendando muitas coisas. Vi-os também fora de uma porta, ao norte do monte Calvário e a NO da cidade; entraram numa estalagem, onde ficaram nesses dias muitos discípulos, a qual estava sob a administração de Seráfia, (conhecida pelo nome de Verônica). Pedro e João mandaram alguns discípulos de lá ao Cenáculo, para dar alguns recados, dos quais me esqueci.
        
Foram também à casa de Seráfia, à qual tinham de pedir diversas coisas; o marido desta, membro do conselho, estava a maior parte do tempo fora de casa, em negócios e, mesmo quando estava em casa, ela o via pouco. Seráfia era uma mulher quase de idade da SS. Virgem e há tempo estava em relações com a Sagrada Família; pois quando o Menino Jesus, depois da festa, ficara atrás, em Jerusalém, comera em casa dela.
         Os dois Apóstolos receberam ali diversos objetos, em cestos cobertos, que foram levados ao Cenáculo, em parte pelos discípulos. Foi também ali que receberam o cálice de que Nosso Senhor se serviu, na instituição da sagrada Eucaristia.
        

Jesus vai a Jerusalém


            Na manhã em que os dois Apóstolos andaram por Jerusalém, ocupados com os preparativos de Páscoa, Jesus se despediu muito comovido das santas mulheres, de Lázaro e de sua Mãe em Betânia, dando-lhes ainda algumas instruções e exortações.
         Vi o Senhor conversar com a Virgem SS. Separadamente; disse-lhes, entre outras coisas, que tinha mandado a Pedro, o representante da fé, e João, o representante do amor, para prepararem a Páscoa em Jerusalém. De Madalena, que estava desvairada de dor e tristeza, disse o Mestre que o seu amor era indizível, mas ainda arraigado na carne e que por isso ficava desatinada de dor. Falou também das intenções traiçoeiras de Judas e a Santíssima Virgem pediu por este.
        
Judas tinha ido novamente de Betânia a Jerusalém, sob pretexto de fazer várias compras e pagamentos. De manhã interrogou Jesus os nove Apóstolos a respeito, apesar de saber perfeitamente o que Judas estava fazendo. Este correu todo o dia pelas casas dos fariseus, combinando tudo com estes; O traidor premeditou todos os passos que carecia dar, para que pudesse sempre explicar a sua ausência; não voltou para junto de Nosso Senhor, senão pouco antes de comerem o cordeiro pascal. Vi-lhe todas as conspirações e os pensamentos. Quando Jesus falou a Maria acerca de Judas, vi muitas coisas em relação ao caráter deste; era ativo e atencioso, mas cheio de avareza, ambição e inveja e não lutava contra as paixões. Fizera também milagres e curara doentes na ausência de Jesus.
        
Quando Nosso Senhor comunicou à SS. Virgem o que havia de suceder, pediu ela de modo tocante que a deixasse morrer com Ele. Mas Jesus exortou-a a que mostrasse mais calma na dor do que as outras mulheres; disse-lhe também que ressuscitaria e lhe indicou o lugar onde lhe, apareceria. A Mãe SS. Então não chorou muito, mas ficou tão profundamente triste e séria que impressionou a todos. Nosso Senhor, como Filho piedoso, agradeceu-lhe todo o amor que lhe tinha mostrado; abraçou-o com o braço direito e apertou-a ao coração; disse-lhe também que faria a ceia com ela espiritualmente, indicando-lhe a hora em que a receberia. Ainda se despediu de todos, muito comovido, e instruiu-os sobre muitas coisas.
        
Cerca de meio dia partiu Jesus de Betânia, com os nove Apóstolos, tomando o caminho de Jerusalém; seguiram-no sete discípulos que, com exceção de Natanael e Silas, eram naturais de Jerusalém e arredores. Lembro-me que entre estes estavam João Marcos e o filho da viúva pobre, que na quinta-feira antecedente oferecera o denário no Templo, enquanto Jesus ensinava. Havia poucos dias Jesus admitira o último como discípulos. As santas mulheres seguiram mais tarde.

         Jesus e a comitiva andaram por aqui e por ali, por diversos caminhos ao redor do monte das Oliveiras, no vale de Josafá e até o monte Calvário; durante todo o caminho, continuou a ensinar-lhes. Disse aos Apóstolos, entre outras coisas, que até agora lhes dera pão e vinho, mas hoje queria dar-lhes seu corpo e sangue, que lhes daria e deixaria tudo que tinha. Nosso Senhor disse-o de uma maneira tão tocante, que toda a alma parecia fundir-se Lhe e languir de amor, com o desejo de se lhes dar. Os discípulos não O compreenderam, julgaram que falava do cordeiro pascal. Não se pode exprimir quanto havia de amor e resignação nos últimos discursos que fez em Betânia e aqui. As santas mulheres foram mais tarde à casa de Maria, mãe de Marcos.

         Os sete discípulos que seguiram Nosso Senhor a Jerusalém, não O acompanharam no caminho, mas levaram as vestimentas da cerimônia da Páscoa ao Cenáculo, já encontraram todo o vestuário da cerimônia no vestíbulo, onde os discípulos e alguns outros o tinham colocado; também tinham coberto as paredes da sala com tapeçaria, desprendido as aberturas do teto e aprontado três candeeiros de suspensão. Pedro e João foram então ao vale de Josafá, para chamar a Jesus e aos nove Apóstolos. Os discípulos e amigos que comeram com eles o cordeiro pascal vieram mais tarde.
        

A última ceia pascal


            Jesus e os seus comeram o cordeiro pascal no Cenáculo, divididos em três grupos de doze, dos quais cada um era presidido por um chefe, que fazia às vezes de pai de família. Jesus tomou a refeição com os doze Apóstolos, na sala do Cenáculo. Natanael presidiu a outra mesa, numa das salas laterais e outros doze tinham como pai de família Eliaquim, filho de Cléofas e Maria Heli, irmão de Maria Cléofas e que fora antes discípulos de João Batista.

Três cordeiros tinham sido imolados para eles no Templo, com as cerimônias do costume. Mas havia lá um quarto cordeiro, que foi imolado no Cenáculo; foi o que Jesus comeu como os doze Apóstolos. Judas ignorava essa circunstância, pois estava ocupado com diversos negócios e com a traição e ainda não estava de volta, por ocasião da imolação do cordeiro destinado a Jesus e aos Apóstolos foi uma cerimônia singularmente tocante; realizou-se no vestíbulo do Cenáculo; Simeão, que era levita, ajudou. Os Apóstolos e os discípulos estavam também presentes, cantando o salmo 118. Jesus falou então de uma nova época, que começava; disse que então se devia cumprir o sacrifício de Moisés e a significação do cordeiro pascal simbólico; o cordeiro devia por isso ser imolado do mesmo modo que o do Egito, do qual só então o povo de Israel sairia verdadeiramente liberto.

Os vasos e tudo o que era mais precioso, estavam prontos; trouxeram um belo cordeirinho, ornado de uma grinalda, que foi tirada e enviada à SS. Virgem, que ficara com as santas mulheres em outra sala. O cordeiro foi amarrado pelo meio do corpo numa tábua, o que recordou Jesus preso à coluna da flagelação. O filho de Simeão segurou a cabeça do cordeiro para cima; Jesus cravou-lhe a faca no pescoço, entregando-a depois ao filho de Simeão, que continuou a preparação do cordeiro. Jesus parecia sentir dor e repugnância em feri-lo. Fé-lo rapidamente, mas com muita gravidade, o sangue foi colhido numa bacia; trouxeram um ramo de hissopo, que Jesus molhou no sangue. Em seguida avançou para a porta, tingiu com o sangue os dois portais e a fechadura, fixando depois em cima da porta, o ramo tinto de sangue. Durante esse alto, lhes ensinou solenemente e disse, entre outras coisas, que o Anjo exterminador passariaque fizessem, porém, a adoração naquele lugar, sem medo e inquietação, depois dele, o verdadeiro Cordeiro pascal, ter sido imolado; começaria um tempo e um sacrifício novo, que duraria até o fim do mundo.

Dirigiram-se então ao fogão, no fundo da sala, onde outrora estivera a Arca da Aliança; já estava acesso o fogo. Jesus aspergiu o forno com o sangue e consagrou-o como altar; o resto do sangue e a gordura vazaram-nos no fogo, debaixo do altar. Todas as portas estavam fechadas durante essa cerimônia.

Entretanto, o filho de Simeão acabara de preparar o cordeiro pascal. Pusera-o numa estaca, as pernas dianteiras fixadas num pau transversal, as traseiras na estaca. Ai! parecia tanto com Jesus pregado na Cruz! Em seguida foi posto no forno, para ser assado, junto com os outros três, trazidos do Templo.

Os cordeiros pascais dos judeus eram todos imolados no átrio do Templo, em três lugares diversos: para as pessoas de distinção, para o agente pobre e para os forasteiros. O cordeiro pascal de Jesus não foi imolado no Templo, mas todo o resto da cerimônia foi feita rigorosamente conforme a lei. Jesus falou mais tarde a esse respeito; disse que o cordeiro era simplesmente um símbolo; que Ele mesmo, na manhã seguinte, devia ser o verdadeiro Cordeiro pascal. Não sei mais tudo quanto ensinou nessa ocasião.

Desse modo instruiu Jesus os Apóstolos sobre o cordeiro pascal e sua significação. Por fim veio também Judas. Tendo então chegando a hora, preparam-se as mesas. Os convivas vestiram as vestes da cerimônia, que se achavam no vestíbulo; outro calçado, uma veste branca, à maneira de túnica ou camisa e por cima um manto, curto na frente e comprido atrás; arregaçaram as vestes com o cinto, sendo também as mangas largas arregaçadas. Era o traje de viagem, prescrito pela Lei mosaica. Assim se dirigiu cada grupo à respectiva mesa; os dois grupos de discípulos para as salas laterais, O Senhor e os Apóstolos à sala do Cenáculo.

Tomando todos um bastão na mão, caminharam, dois a dois, para a mesa, onde ficaram em pé diante dos respectivos lugares, os bastões encostados nos braços e as mãos levantadas. Jesus, que estava no meio da mesa, recebera do mordomo dois pequenos bastões, um pouco recurvados em cima, semelhantes a cajados curtos, de pastores. Tinham em cima uma forqueta, a maneira de ramo cortado. Jesus pô-los à altura da cintura, em forma de cruz, diante do peito e durante a oração colocou os braços estendidos sobre as forquetas. Nessa atitude tinham os movimentos do Mestre algo de singularmente tocante e parecia servir-lhe de apoio a cruz, que em pouco tempo devia pesar-lhe sobre os ombros. Nessa posição cantaram: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel” e “Louvado seja o Senhor, etc.”. Terminada a oração, Jesus deu um dos bastões a Pedro e o outro a João. Puseram-nos de lado ou fizeram-nos passar de mão a mão, entre os outros discípulos; já não me lembro mais exatamente.

A mesa era estreita e tão alta, que passava meio pé acima dos joelhos de um homem; tinha a forma de um segmento de círculo. Em frente de Jesus, na parte interior do semicírculo, havia um lugar livre, para servir os pratos. Se bem me lembro, estavam à direita de Jesus: João, Tiago o Maior e Tiago o Menor; no lado estreito, à direita, Bartolomeu; em seguida, no semicírculo interior, Tomé e Judas Iscariotes; à esquerda, Simeão e perto deste, no lado interior, Mateus e Felipe.

No meio da mesa, numa travessa, estava o cordeiro pascal. A cabeça repousava-lhe sobre os pés dianteiros, postos em forma de cruz, as pernas traseiras estavam estendidas; a margem da travessa, em roda do cordeiro, estava coberto de alho. Havia mais uma travessa com o assado da Páscoa, a cada lado desta um prato com ervas verdes, dispostas umas contra as outras, em pé e mais outro prato com trufos de ervas amargas, semelhantes a erva de balsamo. Diante de Jesus havia um prato com ervas de cor verde-amarelada e outro com molho escuro. Pães redondos serviam de pratos para os convivas, que usavam facas de osso.

Depois da oração, o mordomo pôs na mesa, diante de Jesus, a faca para trinchar o cordeiro. Pós também diante de Nosso Senhor um copo de vinho e encheu de um jarro seis copos, cada um para dois discípulos. Jesus benzeu o vinho e bebeu, os Apóstolos beberam, dois a dois em cada copo. O Senhor trinchou o cordeiro; os Apóstolos apresentaram cada um com o seu bolo redondo, com uma espécie de gancho, recebendo cada um a sua parte. Comeram-na apressadamente, separando a carne dos ossos com as facas de osso. Os ossos descarnados foram depois queimados. Comeram também às pressas do alho e da verdura, que ensoparam no molho. Comeram o cordeiro pascal em pé, reclinados apenas um pouco aos encostos dos assentos. Jesus partiu também um dos pães ázimos, recobrindo uma parte; o resto distribuiu. Comeram todos então os respectivos bolos. Trouxeram ainda um cálice de vinho, mas Jesus não bebeu mais. Disse: Tomai este vinho e reparti-o entre vós, pois não beberei mais vinho, até chegar o reino de Deus. Tenho bebido dois a dois, cantaram e em seguida Jesus ainda rezou e ensinou; finalmente todos lavaram as mãos. Só então se deitaram nos assentos. Tudo que precedeu, foi muito depressa, ficando os convivas em pé; somente ao fim se encostaram um pouco aos assentos.

O Senhor trinchara também outro cordeiro, que foi depois levado para as santas mulheres, a um dos edifícios laterais do pátio, onde tomaram a ceia. Comeram ainda ervas e alface com molho. Jesus estava extraordinariamente amável e sereno; nunca o tinha visto assim. Disse também aos Apóstolos que esquecessem tudo que os pudesse angustiar. A SS. Virgem, à mesa das mulheres, estava também muito serena. Comoveu-me profundamente ver como se virava com tanta simplicidade, quando as outras mulheres se lhe aproximavam, puxando-a pelo véu, para lhe falarem.

A princípio Jesus conversou muito amavelmente com os Apóstolos, enquanto ceavam; mas depois se tornou mais sério e triste. “Um de vós me atraiçoará, disse, cuja mão está comigo à mesma mesa.” Jesus serviu alface, de que havia só um prato, àqueles que lhe estavam ao lado; encarregou a Judas, que lhe ficava quase em frente, de distribuí-la pelo outro lado. Os Apóstolos assustaram-se muito, quando Jesus falou do traidor, dizendo: “Um que está comigo à mesma mesa”, ou “que mete a mão no mesmo prato comigo”, o que quer dizer: “Um dos doze que comigo comem e bebem, um daqueles com os quais parto o meu pão”. Com essas palavras não indicou Judas aos outros; pois – “meter a mão no mesmo prato” – era uma alocução geral, indicando relações da maior intimidade. Contudo, quis também dar um aviso a Judas, que no mesmo momento de fato meteu com o Salvador a mão no mesmo prato, para distribuir alface. Jesus disse ainda: “O Filho do Homem vai certamente para a morte, como está escrito a respeito dele, mas ai do homem por quem será traído! Melhor fora nunca haver nascido”.

Os Apóstolos ficaram muito perturbados e perguntaram um após outro: “Senhor, sou eu?” pois todos bem sabiam que nenhum compreendera o sentido daquelas palavras. Pedro inclinou-se para João, por detrás de Jesus e fez-lhe um sinal, para perguntar ao Senhor quem era; pois tendo sido censurado tantas vezes por Jesus, receava que se referisse a ele. Ora, João estava deitado à direita do Senhor e, como todos comiam com a mão direita, encostando-se sobre o braço esquerdo, estava ele com a cabeça perto do peito de Jesus. Aproximou mais a cabeça do peito do Mestre e perguntou-lhe: Senhor, quem é? Então lhe foi revelado que o Senhor se referia a Judas. Não vi Jesus pronunciar as palavras: “É aquele a quem dou o bocado de pão molhado”; não sei se o disse muito baixo a João; este, porém, o percebeu, quando Jesus molhou o pão envolvido em alface e afetuosamente o ofereceu a Judas, que justamente nesse momento perguntava também: “Senhor, sou eu?” Jesus olhou-o com muito amor e deu-lhe a resposta concebida em termos gerais. Era entre os Judeus sinal de amizade e intimidade; Jesus fê-lo muito afetuosamente, para exortá-lo, sem o comprometer perante os outros. Judas, porém, estava com o coração cheio de raiva. Vi, durante toda a ceia, uma pequena figura hedionda sentada aos seus pés, a qual algumas vezes lhe subiu até o coração. Não percebi se João repetiu a Pedro o que ouvira de Jesus; mas vi que o sossegou com um olhar.


O Lava-pés.

           
Levantaram-se da mesa e, enquanto mudavam e arranjavam as vestes, como costumavam fazer antes da oração solene, entrou o mordomo, com os dois criados, para levar a mesa, tirá-la do meio dos assentos que a cercavam e pô-la ao lado. Tendo feito isso, recebeu ordem de Jesus para trazer água ao vestíbulo e saiu da sala, com os dois criados. Jesus, em pé no meio dos Apóstolos, falou-lhes muito tempo em tom solene. Mas tenho até agora visto e ouvido tantas coisas, que não é possível relatar com exatidão a matéria de todos os discursos.

Lembro-me que falou do seu reino, de sua ida para o Pai, prometendo deixar-lhes tudo o que possuía, etc. Também pregou sobre a penitência, exame e confissão das faltas, arrependimento e purificação. Tive a impressão de que essa instrução se relacionava com o lava-pés e vi também que todos conheceram os seus pecados e se arrependeram, com exceção de Judas. Esse discurso foi longo e solene. Tendo terminado, Jesus mandou João e Tiago o Menor trazerem a água do vestíbulo, ordenando aos Apóstolos que colocassem os assentos em semicírculo, Ele próprio foi ao vestíbulo, despiu o manto e arregaçando a túnica, cingiu-se com um pano de linho, cuja extremidade mais longa pendia para baixo.
        
Durante esse tempo tiveram os Apóstolos uma discussão, sobre qual deles devia ter o primeiro lugar, como o Senhor lhes anunciara claramente que os ia deixar e que o seu reino estava perto, surgiu de novo entre eles a opinião de que Jesus tinha aspirações secretas, um triunfo terrestre, que se realizaria no último momento.

         Jesus, que estava no vestíbulo, deu ordem a João para tomar uma bacia e a Tiago o Menor para trazer um odre cheio de água, transportando-o diante do peito, de modo que o bocal pendesse sobre o braço. Depois de ter derramado água do odre na bacia, mandou que os dois O seguissem à sala, onde o mordomo tinha posto no meio outra bacia maior, vazia.

         Entretanto pela porta da sala, de forma humilde, Jesus censurou os Apóstolos em poucas palavras, por causa da discussão havia antes entre eles, dizendo, entre outras coisas, que Ele mesmo queria servir-lhes de criado, que tomassem os assentos, para que lhes lavasse os pés. Então se sentaram, na mesma ordem em que foram colocados à mesa, tendo sido os assentos dispostos em semicírculo. Jesus, indo de um a outro, derramou-lhes sobre os pés água da bacia, que João sucessivamente colocava sobre os pés de cada um. Depois tomava o Mestre a extremidade da toalha de linho, com que estava cingido e enxugava-lhes os pés com ambas as mãos. Em seguida se aproximava, com Tiago, do Apóstolo seguinte. João esvaziava de cada vez a água usada, na grande bacia que estava no meio da sala e Jesus enchia de novo a bacia, com água do odre que Tiago segurava, derramando-a sobre os pés do Apóstolo e enxugando-lhos.
        
O Senhor, que durante toda a ceia pascal se mostrara singularmente afetuoso, desempenhou-se também desta humilde função com o mais tocante amor. Não fazia como uma cerimônia, mas como ato santo de caridade, exprimindo nele todo o seu amor.
        
Quando chegou a Pedro, este quis recusar, dizendo: “Senhor, Vós me quereis lavar os pés?”. Disse, porém, o Senhor: “Agora não entendes o que faço, mas entendê-lo-ás no futuro”. Pareceu-me que lhe disse em particular: “Simão, tens merecido aprender de Meu Pai quem Sou Eu, donde venho e para onde vou; só tu o tens conhecido e confessado; por isso, construirei sobre ti a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. O meu poder há de ficar também com os teus sucessores, até o fim do mundo”.

Jesus indicou-o aos outros, dizendo-lhes que Pedro devia substituí-lo na administração e no governo da Igreja, quando Ele tivesse saído deste mundo. Pedro, porém, disse: “Vós não me lavareis jamais os pés”. O Senhor respondeu-lhe: “Se eu não tos lavar, não terás parte em mim”. Então lhe disse Pedro: “Senhor, não me lavareis somente os pés, mas também as mãos e a cabeça”. Jesus respondeu: “Quem foi lavado, é puro no mais; não é preciso lavar senão os pés. Vós também estais limpos, mas não todos.”Com estas palavras referiu-se a Judas.
        
Jesus, ensinando sobre o lava-pés, disse que era uma purificação das faltas quotidianas, porque os pés, caminhando descuidosamente na terra, se sujavam continuamente.
        
Esse banho dos pés era espiritual e uma espécie de absolvição. Pedro, porém, viu nele apenas uma humilhação muito grande para o Mestre; não sabia que Jesus, para salvá-lo e aos outros homens, se humilharia na manhã seguinte até à morte ignominiosa da Cruz.

         Quando Jesus lavou os pés de Judas, mostrou-lhe uma afeição comovedora; aproximou o rosto dos pés do Apóstolo infiel, disse-lhe muito baixo que se arrependesse, pois que já por um ano pensava em tornar-se infiel e traidor. Judas, porém, parecia não querer perceber e falava com João. Pedro irritou-se com isso e disse-lhe: “Judas, o Mestre fala-te”. Então disse Judas algumas palavras vagas e evasivas a Jesus, como: “Senhor, tal coisa nunca farei”.

          Os outros não perceberam as palavras que Jesus dissera a Judas, pois falara baixo e eles não prestaram atenção; estavam ocupados em calçar as sandálias. Nada, em toda a Paixão, afligiu tão profundamente o Senhor como a traição de Judas. Jesus lavou depois ainda os pés de João e Tiago. Primeiro, se sentou Tiago e Pedro segurou o odre de água, depois se sentou João e Tiago segurou a bacia.

         Jesus ensinou ainda sobre a humildade, dizendo que aquele que servia aos outros, era o maior de todos e que dali em diante deviam lavar humildemente os pés uns aos outros; tocou ainda na discussão sobre qual deles havia de ser o maior, dizendo muitas coisas que se encontram também no Evangelho.

         “Sabeis o que vos fiz? Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem, porque o sou. Se eu, sendo vosso Senhor e Mestre, vos lavei os pés, logo deveis também lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu fiz, assim façais vós também. Em verdade, em verdade, vos digo: não é o servo maior do que o seu Senhor, nem o enviado é maior do que aquele que o enviou. Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sereis se também as praticardes. Não digo isto de todos vós; sei os que tenho escolhido; mas é necessário que se cumpra o que diz a Escritura: ”O que come o pão comigo, levantará contra mim o calcanhar”. Desde agora vos digo, antes que suceda; para que, quando suceder, creiais que sou eu. Em verdade, em verdade vos digo: “O que recebe aquele que eu enviar, a mim me recebe; e o que me recebe a mim, recebe Aquele que me enviou”. (Jo. 13,12-20).

         Jesus vestiu de novo as vestes. Os Apóstolos desenrolaram também as vezes, que antes tinham arregaçado, para comer o cordeiro pascal.


Instituição da Sagrada Eucaristia


         Por ordem do Senhor, o mordomo pusera novamente a mesa e colocara-a um pouco mais alto e no meio, coberto de um tapete, sobre o qual estendera uma toalha vermelha e em cima desta, outra branca, bordada a crivo. Por baixo da mesa pôs um jarro de água e outro de vinho.

         Pedro e João, indo à parte da sala onde era o forno do Cordeiro pascal, buscaram o cálice que haviam trazido da casa de Seráfia. Transportaram-no solenemente, dentro do invólucro; eu tinha a impressão de que carregavam um Tabernáculo. Colocaram-no sobre a mesa, diante de Jesus. Havia também um prato oval, com três pães ázimos, brancos e delgados, marcados com sulcos regulares; eram por estes divididos em três partes, no sentido da largura e no duplo de partes da largura, no sentido comprimento. Os pães estavam cobertos. Jesus já lhes fizera ligeiras incisões, durante o ceia pascal, para parti-los mais facilmente e pusera por baixo da toalha a metade do pão partido no banquete pascal. Estavam também sobre a mesa um cântaro de água e outro de vinho, como também três vasos, um com óleo grosso, outro com azeite, o terceiro vazio e mais uma espátula.

         Desde os antigos tempos reinava o costume de partir o pão e beber do mesmo cálice no fim do banquete; era sinal de fraternidade e amor, usado por ocasião de boa vinda e despedida. Creio que há alguma coisa a este respeito também na Escritura Sagrada. Jesus, porém, elevou esse uso à dignidade do Santíssimo Sacramento. Até então tinha sido somente um rito simbólico e figurativo. Pela traição de Judas foi levado ao tribunal também a acusação de ter Jesus juntado alguma coisa nova às cerimônias da Páscoa; Nicodemos, porém, provou com trechos da Escritura Sagrada, que esse uso de despedida era muito antigo.

         O lugar de Jesus era entre Pedro e João. As portas estavam fechadas; tudo se fez com solenidade misteriosa. Depois de se haver tirado do cálice o invólucro e levado à parte separada da sala, rezou Jesus, falando num tom solene. Vi que lhes explicava todas as santas cerimônias da última ceia; era como se um sacerdote ensinasse aos outros a santa Missa.

         Em seguida tirou da bandeja em que estavam os vasos, um tabuleiro corrediço, tomou o pano de linho que cobria o cálice e estendeu-o sobre o tabuleiro. Depois o vi tirar do cálice uma patena redonda e pô-la sobre o tabuleiro coberto. Tirou então os pães que estavam ao lado, num prato coberto com um pano de linho e colocou-os na patena, diante de si. Os pães, que tinham a forma de um quadrilátero oblongo, excediam dos dois lados a patena, cuja borda, porém, permanecia visível na largura.
Em seguida puxou para si o cálice, tirou dele um copinho, colocando também os seis copos pequenos à direita e esquerda do cálice. Depois benzeu o pão àzimo e, creio, também os óleos, que estavam ao lado, levantou a patena, em que estavam os pães àzimos, com ambas as mãos, olhou para o céu, rezou e ofereceu-o a Deus, pôs a patena no tabuleiro e cobriu-a. Depois tomou o cálice, mandou Pedro derramar vinho e João derramar água, que antes benzera e juntou ainda um pouco de água, que colheu com a colherzinha. Benzeu o cálice, levantou-o, ofereceu-o, rezando e colocou-o no tabuleiro.

         Mandou a Pero e João derramarem-Lhe água sobre as mãos, por cima do prato em que anteriormente foram postos o pães àzimos e, tirando a colherzinha do pé do cálice, apanhou um pouco de água que lhe correra sobre as mãos e espargiu-a sobre as mãos dos dois Apóstolos. Depois passou o prato em redor da mesa e todos lavaram nele as mãos. Não me lembro bem se foi essa a ordem exata das cerimônias; mas tudo isso, que me lembrou muito o santo Sacrifício da Missa, comoveu-me profundamente.

         Durante esse santo ato tornou-se Jesus cada vez mais afetuoso; disse-lhes que agora queria dar-lhes tudo que tinha: sua própria pessoa. Era com se derramasse sobre eles todo o seu amor e vi-O tornar-se transparente; parecia uma sombra luminosa.

         Orando com esse amor, partiu o pão nas partes marcadas, as quais amontoou sobre a patena, em forma de pirâmide. Do primeiro bocado quebrou um pedacinho com a ponta dos dedos e deixou-o cair no cálice.

         No momento em que o fez, tive a impressão de que a SS. Virgem recebeu o Santo Sacramento espiritualmente, apesar de não estar ali presente. Não sei agora como o vi; mas pensei vê-la entrar pela porta, sem tocar no chão aproximar-se de Jesus, do lado desocupado da mesa e receber o santo Sacramento em frente d’Ele; depois não a vi mais. Jesus dissera-lhe de manhã, em Betânia, que celebraria a Páscoa junto com ela, marcando-lhe a hora em que, recolhida em oração, devia recebê-la espiritualmente.

         O Senhor rezou ainda e ensinou; todas as palavras lhe saíram da boca como fogo e luz e entraram nos Apóstolos, com exceção de Judas. Depois tomou a patena com os bocados de pão (não sei, mas se a tinha posto sobre o cálice) e disse: “Tomai e comei, isto é o meu corpo, que será entregue por vós”. Nisso estendeu a mão direita como para benzer e, enquanto assim fazia, saiu dEle um esplendor, suas palavras eram luminosas e também o era o pão que se precipitou na boca dos Apóstolos, como um corpo resplandecente; era como se Ele mesmo entrasse neles. Vi-os todos penetrados de luz; só Judas vi escuro.
O Senhor deu o Sacramento primeiro a Pedro, depois a João; em seguida fez sinal a Judas para aproximar-se; foi o terceiro, a quem deu o SS. Sacramento. Mas a palavra do Cristo parecia recuar da boca do traidor. Fiquei tão horrorizada, que não posso exprimir o que senti nesse momento. Jesus, porém, disse-lhe: “Fazei já o que queres fazer” e continuou a dar o Santo Sacramento aos Apóstolos, que se aproximaram dois a dois, segurando alternadamente, em frente um do outro, um pequeno pano engomado, bordado nos lados, o qual cobria o cálice.

         Jesus levantou o cálice pelas duas argolas até a altura do rosto e pronunciou as palavras da consagração sobre ele. Nesse ato ficou transfigurado e como transparente, parecendo passar tudo o que lhes deu. Fez Pedro e João beberem do cálice, que segurava nas mãos, colocando-o depois na mesa; João passou com a colherzinha o SS. Sangue do cálice para os copinhos, que Pedro ofereceu aos Apóstolos, os quais beberam dois a dois de um copo. Creio, mas não tenho absoluta certeza, que Judas também participou do cálice; não voltou, porém, ao seu lugar, mas saiu imediatamente do Cenáculo.
Como Jesus lhe tivesse feito um sinal, pensaram os outros que o tivesse encarregado de algum negócio. Retirou-se sem ter rezado e feito a ação de graças, por onde se vê como é mau retirar-se sem ação de graças, depois de tomar o pão quotidiano ou o Pão Eterno. Durante toda a refeição, eu tinha visto ao pé de Judas a figura de um pequeno monstro vermelho e hediondo, cujo pé era como um osso descarnado e que ás vezes lhe subia até o coração. Quando saiu de casa, vi três demônios cercarem-no; um entrou-lhe na boca, outro empurrou-o para frente e o terceiro correu-lhe à frente. Era noite e eles pareciam alumiá-lo; Judas corria como um louco.

         O Senhor deitou o resto do Santíssimo Sangue, que ainda ficara no fundo do cálice, no copinho que antes estivera dentro do cálice; pondo depois os dedos por cima do cálice, mandou Pedro e João derramarem água e vinho sobre eles. Feito isso, fê-los beber ambos do cálice e o resto vazou-os nos outros copinhos, distribuindo-os pelos outros Apóstolos. Em seguida Jesus enxugou o cálice, meteu nele o pequeno copo, contendo o resto do Santíssimo Sangue, colocou em cima a patena, com os restantes pães àzimos consagrados pôs a tampa e cobriu o cálice de novo com o pano, colocando-o depois sobre a bandeja, entre os seis copinhos. Vi os Apóstolos comungarem dos restos do Santíssimo Sacramento, depois da ressurreição de Jesus.

         Não me lembro de ter visto o Senhor comer as espécies consagradas, a não ser que eu não reparasse. Dando o Santíssimo Sacramento, deu-se de modo que parecia sair de si mesmo e derramar-se nos Apóstolos, numa efusão de amor misericordioso. Não sei como posso exprimi-lo.

         Também não vi Melquisedec, quando ofereceu pão e vinho, come-lo e bebê-lo. Soube também porque os sacerdotes o consomem, apesar de Jesus não o ter feito.

         Dizendo isso, Catharina Emmerich virou de repente a cabeça, como para escutar; recebeu uma explicação sobre esse ponto, da qual pôde comunicar somente o seguinte; se, porém, os sacerdotes não o recebessem, já se teria perdido há muito; por isso é que se conserva”.

         Todas as cerimônias, durante a instituição do SS. Sacramento, foram feitas por Jesus com muita calma e solenidade, para ao mesmo tempo ensinar e instruir os Apóstolos, os quais vi depois tomarem notas de certas coisas, nos pequenos rolos que tinham consigo. Todos os movimentos de Jesus, para a direita e para a esquerda, eram solenes, como sempre que estava rezando. Tudo mostrava em geral o santo Sacrifício da Missa. Durante a cerimônia e em outras ocasiões, vi também os Apóstolos se inclinarem uns diante dos outros ao aproximarem-se, como ainda fazem os sacerdotes de hoje.

        
Instruções secretas e consagrações


         Jesus deu ainda instruções secretas. Disse aos Apóstolos que continuassem a consagrar e administrar o SS. Sacramento, até o fim do mundo. Ensinou-lhes as formas essenciais da administração e do uso do Sacramento e de que modo deviam gradualmente ensinar e publicar esse mistério; explicou-lhes quando deviam receber o resto das espécies consagradas e dá-lo à SS. Virgem e que deviam consagrar também o SS. Sacramento, depois de lhes ter enviando o Divino Consolador.

            Instruiu-os em seguida sobre o sacerdócio, sobre a preparação do Crisma e dos santos óleos e sobre a unção. Estavam ao lado do cálice três urnas, duas das quais continham misturar de bálsamo e diversos óleos e algodão; as urnas podiam ser postas em cima da outra. Jesus ensinou-lhes muitos mistérios, como se devia preparar o santo Crisma, a que partes do corpo se devia aplicar e em que ocasiões.

Lembro-me, entre outras coisas, que mencionou um caso em que a sagrada Eucaristia não podia mais ser recebida; talvez se tenha referido à Extrema-Unção: mas as minhas lembranças a tal respeito não são muito claras. Falou ainda de diversas unções, inclusive a dos reis e disse que os reis sagrados com o Crisma, mesmo os injustos, possuíam uma força interna misteriosa, que não era dada aos outros. Derramou, pois, ungüento e óleo na urna vazia e misturou-os; não sei mais positivamente se foi nesse momento ou já por ocasião da consagração dos pães, que benzeu o óleo.

         Vi depois Jesus ungir a Pedro e João; já por ocasião da instituição do SS. Sacramento lhe derramara sobre as mãos a água que sobre as suas lhe correra e os fizera também beber do cálice que Ele mesmo segurava.

         Saindo do meio da mesa, um pouco para o lado, pousou as mãos primeiro sobre os ombros e depois sobre a cabeça de Pedro e João.  Em seguida mandou que ficassem de mãos postas e colocassem os polegares em forma de cruz. Inclinaram-se os dois Apóstolos profundamente diante do Mestre (não sei ai estavam de joelhos). O Senhor ungiu-lhes os polegares e indicadores com ungüento e fez-lhes com o mesmo também o sinal da cruz na cabeça. Disse-lhes também que essa unção devia permanecer com eles até o fim do mundo.

Tiago o Menor, André, Tiago o Maior e Bartolomeu receberam também ordens. Vi também o Senhor ajustar em forma de cruz, sobre o peito de Pedro, a faixa estreita de pano, que todos traziam ao pescoço; aos outros, porém, do ombro direito para debaixo do braço esquerdo. Não sei mais com certeza se isso se fez já por ocasião da instituição do SS. Sacramento ou só na hora da unção.

         Vi porém, que Jesus lhes comunicou com essa unção uma coisa real e também sobrenatural, não sei como exprimi-lo em palavras. Disse-lhes mais que, depois de terem recebido o Espírito Santo, deviam também consagrar pão e vinho e dar a unção aos outros Apóstolos. Nesse momento tive uma visão sobre Pedro e João que, no dia de Pentecostes, antes do grande batismo, impuseram as mãos aos outros Apóstolos, o que também fizeram, uma semana depois, a alguns outros discípulos. Vi também João, depois da ressurreição de Jesus, dar pela primeira vez o SS. Sacramento a Nossa Senhora. Esse acontecimento foi celebrado pelos Apóstolos com grande solenidade; a Igreja militante não tem mais essa festa, mas vejo-a celebrada ainda na Igreja triunfante. Nos primeiros dias depois de Pentecostes vi só Pedro e João consagrarem a santa Eucaristia, mais tarde a consagraram também os outros.

         O Senhor benzeu-lhes também fogo, num vaso de bronze; esse fogo desde então ardeu sempre, até depois de longas ausências era guardado junto ao lugar onde se conservava o SS. Sacramento, numa parte do antigo fogão pascal; ali sempre o buscavam para as cerimônias religiosas.

         Tudo que Jesus fez por ocasião da instituição da sagrada Eucaristia e da unção dos Apóstolos, foi debaixo de grande segredo e era também ensinado só secretamente e tem se conservado, na sua essência, pela Igreja até os nossos tempos, aumentando, porém, sob a inspiração do Espírito Santo, conforme as necessidades.

         Os Apóstolos ajudaram na preparação e bênção do santo Crisma; quando Jesus os ungiu e lhes impôs as mãos, fez tudo com grande solenidade.

         Terminadas as santas cerimônias, o cálice, perto do qual estavam também os santos óleos, foi coberto com a capa e Pedro e João levantaram assim o SS. Sacramento para o fundo da sala, separado do resto por uma cortina e ali era desde então o Santuário. O SS. Sacramento estava por cima do fogão pascal, não muito alto. José de Arimatéia e Nicodemos cuidavam do Santuário e do Cenáculo, na ausência dos Apóstolos.

         Jesus ensinou ainda por muito tempo e disse algumas orações com grande fervor. Parecia às vezes conversar com o Pai celeste, cheio de entusiasmo e amor. Os Apóstolos também ficaram penetrados de zelo e ardor e fizeram-lhe várias perguntas, às quais respondeu. Creio que tudo isso está escrito em grande parte na Escritura Sagrada. Durante esses discursos, disse Jesus algumas coisas a Pedro e João separadamente, as quais estes depois deviam comunicar aos outros Apóstolos, como complemento de instruções anteriores e estes aos outros discípulos e às santas mulheres, quando chegassem ao tempo de receberem tais conhecimentos.

Pedro e João estavam sentados perto de Jesus. O Senhor teve também uma conversa particular com João, da qual me lembro agora apenas o prognóstico de que a vida deste Apóstolo seria mais longa que a dos outros; falou-lhe também de sete Igrejas, de coroas, Anjos e outras figuras simbólicas, com as quais designava, como me parece, certas épocas. Os outros Apóstolos sentiram, diante dessa confiança particular, um leve movimento de inveja.

         O Mestre falou também diversas vezes do traidor, dizendo o que naquela hora este estava fazendo; viu sempre Judas fazer o que o Senhor dizia. Como Pedro lhe afirmasse, com grande ardor, que havia de permanecer fiel, disse-lhes Jesus: “Simão, Simão, eis que Satanás vos reclama com instância, para vos joeirar como o trigo; mas eu roguei por ti, afim de que tua fé não desfaleça; e tu enfim, depois de convertido, confirma na fé teus irmãos”. Como, porém, Jesus dissesse que onde iria, não poderiam seguí-lo, exclamou Pedro que o seguiria até a morte. Replicou Jesus: “Em verdade antes que o galo cante duas vezes, tu me negarás três vezes”, Quando lhes anunciou os tempos duros que viriam, pergunto-lhes: “Quando vos enviei sem alforje, sem sapatos, faltou-lhes porventura alguma coisa?” Responderam: “Não”. Disse, porém, que daquela hora em diante, quem tivesse bolsa, a tomasse e também alforje e o que nada tivesse, vendesse a túnica e comprasse espada, pois que se devia cumprir a palavra: “E foi reputado por um dos iníquos”. Tudo que fora escrito sobre Ele, devia cumpri-se então.

         Os Apóstolos entenderam-no no sentido natural e Pedro mostrou-Lhe duas espadas curtas e largas, como cutelos.

         Jesus disse: “Basta, vamo-nos daqui”. Rezaram então um cântico; a mesa foi posta ao lado e dirigiram-se todos ao vestíbulo.

         Ali se aproximaram a mãe de Jesus, Maria de Cleofas e Madalena, que lhe pediram instantemente que não fosse ao monte das Oliveiras; pois se propagara o boato de que queriam apoderar-se dEle. Mas Jesus consolou-as com poucas palavras, continuando apressadamente o caminho; eram cerca de 9 horas da noite. Descendo a grandes passos pelo caminho pelo qual Pedro e João tinham vindo ao Cenáculo, dirigiram-se ao monte das Oliveiras.


Oração solene de despedida de Jesus


         Não podemos deixar de inserir aqui as últimas palavras e ensinamentos tão profundos, que Jesus, no fim da ceia, dirigiu aos Apóstolos, com tanto amor e carinho e que nos foram transmitidos por S. João no seu Evangelho, Caps. 14 a 17. Jesus disse:
         “Não se perturbe o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas; se assim não fora, eu vo-lo teria dito: pois vou a aparelhar-vos o lugar. E depois que eu for e vos aparelhar o lugar, virei outra vez, e tomar-vos-ei comigo, para que onde eu estiver, estejais vós também, para onde eu vou, sabeis vós e sabeis também o caminho”. Disse-lhe Tomé: “Senhor, não sabemos para onde vias, e como podemos saber o caminho?” Respondeu-lhe Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vai ao Pai senão por mim. Se me conhecêsseis a mim, também certamente havíeis de conhecer meu Pai; mas conhecê-Lo-eis bem cedo e já o tendes visto”. Disse-lhe Filipe: “Senhor, mostrai-nos o Pai e isso nos basta”. Respondeu-lhe Jesus: “Há tanto tempo que estou convosco e ainda não me tendes conhecido? Filipe, quem vê a mim, vê também ao Pai. Como dizes logo: “Mostra-nos o Pai?” Não credes que estou no Pai e o Pai está em mim? As palavras que vos digo, não as digo de mim mesmo, mas o Pai, que está em mim, é que faz as obras. Não credes que estou no Pai e que o Pai está em mim? Crede ao menos por causa das mesmas obras. Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim, fará também as obras que faço e fará outras ainda maiores; porque vou para o Pai. E tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu vo-lo farei, para que o Pai seja glorificado no Filho.

         Se me amais, guardais os meus mandamentos. E rogai ao Pai e Ele vos dará outro Consolador, para que fique eternamente convosco, o Espírito da verdade, a quem o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; mas vos deixarei órfãos; virei a vós. Resta ainda um pouco, depois já o mundo não me verá; mas ver-me-eis vós, porque eu vivo e vós vivereis. Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós. Aquele que tem os meus mandamentos e que os guarda, esse é o que me ama. E aquele que me ama, será amado de meu Pai e eu o amarei também e me manifestarei a ele”.

         Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: “Senhores, donde procede que te hás de manifestar a nós e não ao mundo?” Respondeu-lhes Jesus: “Se alguém me ama, guardará a Minha palavra e meu Pai o amará e viremos a ele e faremos nele morada. O que não me ama, não guarda as minhas palavras. E a palavra que tendes ouvido, não é minha, mas, sim, do Pai que me enviou. Eu vos disse estas coisas, permanecendo convosco; mas o Consolador, que é o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar tudo o que vos tenho dito. A paz vos deixo, a minha paz vos dou; eu não vo-la dou  como a dá o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem fique sobressaltado. Já tendes ouvido que eu vos disse: Eu vou e venho a vós. Se me amardes, certamente haveis de alegrar-vos, que vou para junto do Pai, é maior do que Eu. Eu vo-lo disse agora, antes que suceda, para que, quando suceder, o creiais. Já não falarei muito convosco, porque vem o príncipe deste mundo e ele não tem em mim coisa alguma. Mas, para que o mundo conheça que amo o Pai e que faço como me ordena. Levantai-vos, vamo-nos daqui.

         Eu sou a verdadeira videira e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que não der fruto em mim, Ele o cortará e todos os que derem fruto, limpá-los-á, para que o dêem mais abundante. Vós já estais puros, em virtude da palavra que eu vos disse. Permanecei em mim e eu permanecerei em vós. Como o ramo da videira não pode de si mesmo dar fruto, se não permanecer na videira, assim nem vós podereis dar, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira, vós sois os ramos; o que permanece em mim e em quem eu permaneço, dá muito fruto; porque vós sem mim não podeis fazer nada. Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora com o ramo e secará e enfeixá-lo-ão e lançá-lo-ão ao fogo e ali arderá.
Se permanecerdes em mim e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis tudo o que quiserdes e ser-vos-á feito. Nisso é glorificado meu Pai, em que vós deis muito fruto e em que sejais meus discípulos. Como meu Pai me amou assim vos amei. Permanecei no meu amor. Se guardardes os meus preceitos, permanecereis no meu amor, assim como também eu guardei os preceitos de meu Pai e permaneço no seu amor. Disse-vos estas coisas, para que o minha alegria esteja em vós e que a vossa alegria seja completa. O meu preceito é este: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que este de dar a própria vida pelos amigos. Vós sereis meus amigos, se fizerdes o que vos mando. Já vos não chamarei servos; porque o servo não sabe o que faz o seu senhor. Mas chamei-vos amigos, porque vos revelei tudo quanto ouvi de meu Pai. Não fostes vós que me escolhestes a mim, mas fui eu que vos escolhi a vos constitui, para que vades e deis fruto e para que o vosso fruto permaneça, para que tudo quanto pedirdes a meu Pai, em meu nome, Ele vo-lo conceda. O que eu vos mando, é que vos ameis uns aos outros. Se o mundo vos odeia, sabei que primeiro do que a vós, me odiou a mim. Se fôsseis do mundo, o mundo vos amaria como sendo seus; mas porque não sois do mundo, mas do mundo que vos escolhi, por isso é que o mundo vos odeia.

         Lembrai-vos da minha palavra que eu vos disse: Não é o servo maior do que o seu senhor. Se me perseguiram a mim, também vos hão de perseguir a vós. Se guardaram a minha palavra, também vos hão de perseguir a vós. Se guardaram a minha palavra, também hão de guardar a vossa. Mas vos farão tudo isto por causa de meu nome, porque não conhecem aquele que me enviou. Se eu não viesse e não lhe tivesse falado, não teriam pecado; mas agora não há desculpa para o seu pecado. Aquele que me odeia, odeia também a meu Pai. Se eu não tivesse feito entre eles tais obras, como nenhum outro fez, não haveria da parte deles pecado; mas agora não somente as viram, mas ainda me odiaram, tanto a mim como a meu Pai. Mas é para se cumprir a palavra que está escrita na lei (Sal. 34,19; 68,5): “Eles me odiaram sem motivo”. Quando, porém, vier o Consolador, o Espírito da verdade, que procede do Pai, que eu vos enviarei da parte do Pai, Ele dará testemunho de mim; e também vós dareis testemunho, porque estais comigo desde o princípio.

         Eu vos disse estas coisas, para que não vos escandalizeis. Eles vos lançarão fora das sinagogas e está a chegar o tempo em que todo o que vos matar, julgará que nisso faz serviço a Deus. E assim vos tratarão, porque não conhecem o Pai, nem a mim. Ora, eu vos disse estas coisas, para que, quando chegar esse tempo, vos lembreis de que eu vo-las disse. Não vo-las disse, porém, desde o princípio, porque estava convosco. E agora vou para aquele que me enviou; e nenhum de vós pergunta: Para onde vais? Antes, porque eu vos disse estas coisas, se apoderou do vosso coração a tristeza. Mas eu vos digo a verdade; a vós vos convém que eu vá porque, se eu não for não virá a vós o Consolador; mas, se eu for, vo-Lo enviarei. E Ele, quando vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo. Sim, do pecado, porque não creram em mim. E da justiça, porque vou para o Pai e não me vereis mais. E do juízo, enfim, porque o príncipe deste mundo já está julgado e condenado. Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas não as podeis suportar agora. Quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos ensinará todas as verdades, porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo que tiver ouvido e anunciar-vos-á as coisas que estão para vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar. Um pouco e já me não vereis; e outra vez um pouco e verme-eis; porque vou para o Pai.

         Disseram então alguns discípulos uns para os outros. “Que vem a ser isto que Ele nos diz: “Um pouco e já me não vereis e outra vez um pouco e ver-me-eis, porque vou para o Pai”? E diziam: “Que vem a ser isto, que Ele nos diz: um pouco... Não sabemos o que quer dizer”. E entendeu Jesus que lho queriam perguntar e disse-lhes: “Vós perguntais uns aos outros o que é que vos quis significar, quando disse: Um pouco e já me não vereis e outra vez um pouco e ver-me-eis. Em verdade, em verdade vos digo que haveis de chorar e gemer e que o mundo se há de alegrar e que haveis de estar tristes, mas que a vossa tristeza se há de converter em gozo. Quando uma mulher dá à luz, está em tristeza, porque é chegada a sua hora; mas, depois que lhe nasceu um filho, já se não lembra do aperto, pelo gozo que tem, de haver nascido ao mundo um homem. Assim também vós outros sem dúvida estais agora tristes, mas hei de ver-vos de novo e o vosso coração ficará cheio de alegria e esta ninguém vo-la tirará.

         E naquele dia nada mais me perguntareis. Em verdade, em verdade vos digo: se pedirdes ao meu Pai alguma coisa em meu nome, ele vo-la há de dar. Até agora não pedistes nada em meu nome. Pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja completa. Tenho vos dito estas coisas debaixo de parábolas. Está chegando o tempo, em que já não vos hei de falar por parábolas, mas abertamente vos falarei do Pai. Naquele dia pedireis em meu nome e não vos digo que hei de rogar ao Pai por vós. Porque o mesmo Pai vos ama, porque vós me amastes e, crestes que saí de Deus. Eu saí do Pai e vim ao mundo; outra vez deixo o mundo e torno para o Pai”.Disseram-lhe os discípulos: “Eis que agora nos falava abertamente e não usas de parábola  alguma; agora conhecemos que sabeis tudo e que não é necessário fazer-te perguntas; nisto, cremos que saíste de Deus.”Respondeu-lhes Jesus: “Credes agora? Eis que aí vem e já e chegada a hora em que sejais espalhados, cada um para seu lado e que me deixeis só; mas não estou só, porque o Pai está comigo. Tenho vos dito estas coisas, para que tenhais paz em mim. Haveis de ter aflições no mundo; mas tende confiança, eu venci o mundo”.

         Assim falou Jesus e, levantando os olhos ao céu, disse: - “Pai, é chegada a hora, glorifica a teu Filho, para que teu Filho te glorifique a ti; assim como tu lhe deste poder sobre todos os homens, afim de que Ele dê a vida eterna a todos que lhe deste. A vida eterna, porém, consiste em que conheçam por um só verdadeiro Deus a ti e a Jesus Cristo, que enviaste. Glorifiquei-te sobre a terra; acabei a obra de que me encarregaste. Tu, pois, agora, Pai, me glorifica a mim em ti mesmo, com aquela gloria que tive em ti, antes que houvesse mundo. Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo. Eles eram teus e mos deste e eles guardaram a tua palavra. A gora conheceram eles que todas as coisas que me deste, vêm de ti. Porque lhes dei as palavras que me deste; e eles ao receberam e conheceram verdadeiramente que saí de ti e creram que me enviaste. Por eles é que rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus e todas as minhas coisas são tuas e todas as tuas coisas são minhas; e neles sou glorificado. E não estou mais no mundo, mas eles estão no mundo e eu vou para junto de ti.
Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me deste, para que sejam um, assim como também nós. Quando eu estava com eles, guardava-os em teu nome. Conservei os que me deste e nenhum destes se perdeu, mas somente o que era filho da perdição, para se cumprir a Escritura. Mas agora vou para junto de ti e digo estas coisas, estando ainda no mundo, para que eles tenham em si mesmos a plenitude da minha alegria. Dei-lhes a tua palavra mas o mundo os odeia, porque não são do mundo, como também eu não sou do mundo. Não peço que os tires do mundo, mas, sim, que os guardes do mal.
Eles não são do mundo, como eu também não sou do mundo. Santifica-os na verdade. A tua palavra é a verdade. Assim como me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E santifico-me a mim por eles, para que também sejam santificados pela verdade. E não rogo somente por eles, mas rogo também por aqueles que hão de crer em mim por meio das palavras; para que sejam todos um, como tu, Pai, o és em mim e eu em ti, para que também eles sejam um em nós e creia o mundo que enviaste. Dei-lhes a glória que me havias dado, para que sejam um, como nós também como um. Eu estou neles e tu estás em mim, para que eles sejam consumados na unidade e para que o mundo conheça que me enviaste e que os amaste como amaste também a mim.
Pai, a minha vontade é que, onde eu estiver, estejam também comigo aqueles que me deste, para verem a minha glória, que me deste; porque me amaste antes da criação do mundo. Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci e estes conheceram que me enviaste. E eu lhes fiz conhecer o teu nome e lho farei ainda conhecer, afim de que o mesmo amor com que me amaste, esteja neles e eu neles.   

Fonte: Extraído do Livro "Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus - Anna Catharina Emmerich - Ed. MIR.

JESUS NO MONTE DAS OLIVEIRAS.


Jesus, com os Apóstolos, a caminho do horto de Getsêmani

            Quando Jesus, depois da instituição do SS. Sacramento, saiu do Cenáculo com os onze Apóstolos, já tinha a alma oprimida de aflição e crescente tristeza. Conduziu os onze, por um desvio, ao vale de Josafá, dirigindo-se ao monte das Oliveiras.
Ao chegarem ao portão, vi a lua, ainda não inteiramente cheia, levantar-se por cima da montanha. Andando com os Apóstolos pelo vale, disse-lhes o Senhor que lá voltaria um dia, para julgar o mundo, mas não pobre e sem poder como hoje, e que então muitos, com grande medo, exclamariam: “Montes, cobri-nos”.

Os discípulos não O compreenderam, pensando, como muitas vezes nessa noite, que a fraqueza e o esgotamento os faziam delirar. Ora andavam, ora paravam, conversando com o Mestre. Disse-lhes também Jesus:
“Vós todos haveis de escandalizar-vos em mim esta noite”; pois está escrito: “Tirarei o pastor, e as ovelhas serão dispersas. – Mas, quando tiver ressuscitado, preceder-vos-ei na Galiléia”. 

         Os Apóstolos estavam ainda cheios de entusiasmo e amor, pela recepção do SS. Sacramento e pelas palavras solenes e afetuosas de Jesus. Comprimiam-se-Lhe em torno, exprimindo-Lhe de vários modos o seu amor e protestando que não O abandonariam nunca. Mas, como Jesus continuasse a falar no mesmo sentido, disse-lhe Pedro:
            “E, se todos se escandalizarem por vossa causa, eu nunca me escandalizarei”.        
Respondeu-lhe o Senhor:
“Em verdade te digo, tu mesmo três vezes me negarás esta noite, antes do galo cantar”.
Pedro, porém, não quis conformar-se de modo algum e disse:
“Mesmo que tivesse de morrer convosco, não vos havia de negar”.
Assim falaram também todos os outros. Continuavam andando e parando alternadamente e a tristeza de Jesus aumentava cada vez mais. Queriam os Apóstolos consolá-Lo de modo inteiramente humano, assegurando-lhe que não aconteceria tal. Nesses vãos esforços se cansaram, começaram a duvidar e veio-lhes a tentação.

         Atravessaram a torrente Cedron, não pela ponte, sobre a qual Jesus foi depois conduzido preso, mas por outra, porque tinham tomado um desvio.
Getsêmani, situado no monte das Oliveiras, para onde se dirigiram, fica a meia hora certa do Cenáculo, pois do Cenáculo À porta que dá para o vale de Josafá, se leva um quarto de hora e dali ao Getsêmani outro tanto.
Este lugar, no qual Jesus ensinou algumas vezes aos discípulos, passando ali a noite com eles nos últimos dias, consta de algumas casas de pousada, abertas e desocupadas e de um largo jardim, cercado de sebe, no qual há somente plantas ornamentais e árvores frutíferas.

Os Apóstolos e diversas outras pessoas tinham a chave deste jardim, que era um lugar de recreio e de oração. Gente que não tinha jardim próprio fazia às vezes festas e banquetes ali. Havia também vários caramanchões de folhagem espessa, num dos quais ficaram naquele dia oito Apóstolos e alguns outros discípulos, que se lhes juntaram mais tarde.
O horto das Oliveiras é separado do Jardim de Getsêmani por um caminho e estende-se mais para o alto do monte. É aberto, cercado apenas de um aterro e menor do que Getsêmani, um canto cheio de grutas e recantos, em que por toda a parte se vêem oliveiras. Um lado era mais bem tratado; havia nele assentos, bancos de relva bem cuidados e grutas espaçosas e sombrias. Quem quisesse, podia ali facilmente achar um lugar próprio para a oração e meditaçãoEra à parte mais sem cuidados que Jesus ia rezar.
        

Jesus atribulado pelos horrores do pecado.

         Eram quase 9 horas da noite, quando Jesus chegou, com os discípulos, a Getsêmani. Ainda reinava a escuridão na terra, mas no céu a lua já espargia a luz prateada. Jesus estava muito triste e anunciou-lhes a aproximação do perigo. Os discípulos assustaram-se e Ele disse a oito dos companheiros que ficassem no Jardim de Getsêmani, num lugar onde havia um caramanchão.

“Ficai aqui, disse, enquanto vou ao meu lugar rezar”.
Tomando consigo Pedro, João e Tiago o Maior, subiu mais para o alto e, cruzando um caminho, avançara, numa distância de alguns minutos, do horto das Oliveiras ao pé do monte.
Ele estava numa indizível tristeza; pressentia a tribulação e tentação, que se aproximavam. João perguntou-lhe como podia agora estar tão abatido, quando sempre os tinha consolado. Então Jesus disse:
“Minha alma está triste até a morte” e, olhando em redor de si, viu de todos os lados se aproximarem angústias e tentações, como nuvens cheias de figuras assustadoras. Foi nessa ocasião que disse aos Apóstolos:
“Ficai aqui e vigiai comigo; orai, para não serdes surpreendidos pela tentação”. Eles ficaram então ali; Jesus, porém, adiantou-se ainda mais; mas as horrorosas visões assaltavam-no de tal modo, que, cheio de angustia, desceu um pouco à esquerda dos três Apóstolos, escondendo-se debaixo de um grande rochedo, numa gruta de talvez 7 pés de profundidade; os Apóstolos ficaram em cima desse rochedo, numa espécie da cavidade. O chão da gruta era suavemente inclinado e as plantas pendentes do rochedo, que sobressaía em frente, formavam uma cortina diante da entrada, de maneira que quem estivesse dentro da gruta, não podia ser visto de fora.

         Quando Jesus se afastou dos discípulos, vi em redor dele um largo círculo de imagens horríveis, o qual se apertava mais e mais. Cresceu-lhe a tristeza e a tribulação e retirou-se tremendo para dentro da gruta, semelhante ao homem que, fugindo de uma repentina tempestade, procura abrigo para rezar, vi, porém, que as imagens assustadoras o perseguiram lá dentro da gruta, tornando-se cada vez mais distintas.
A estreita caverna parecia encerrar o horrível espetáculo de todos os pecados cometidos, desde a primeira queda do homem, até ao fim dos séculos, como também todos os castigos. Foi ali, no monte das Oliveiras, que Adão e Eva, expulsos do Paraíso, pisaram primeiro a terra e foi nessa caverna que choraram e gemeram.

Tive a clara impressão de que Jesus, entregando-se às dores da Paixão, que ia começar e sacrificando-se à justiça divina, em satisfação de todos os pecados do mundo, de certo modo retirou a sua divindade para o seio da SS. Trindade; impelido por amor infinito, quis entregar-se à fúria de todos os sofrimentos e angústias, na sua humanidade puríssima e inocente, verdadeira e profundamente sensível, para expiação dos pecados do mundo, armado somente do amor do seu coração humano.
Querendo satisfazer pela raiz e por todas as excrescências do pecado e da má concupiscência, tomou o Misericordiosíssimo Jesus no coração a raiz de toda a explicação purificadora e de toda a dor santificante, por amor de nós, pecadores e, para satisfazer pelos pecados inumeráveis, deixou esse sofrimento infinito estender-se, como uma arvore de dores e penetrar-lhe com mil ramos todos os membros do corpo sagrado, todas as faculdades da alma santa.

Entregue assim inteiramente à sua humanidade, implorando a Deus com tristeza e angustia indizíveis, prostrou-se por terra. Viu em inumeráveis imagens todos os pecados do mundo, com toda a sua atrocidade, tomou todos sobre si e ofereceu-se na sua oração, para dar satisfação à justiça do Pai Celestial, pagando com os sofrimentos toda essa dívida da humanidade para com Deus.
Satanás, porém, que se movia no meio de todos os horrores, em figura terrível e com um riso furioso, enraivecia-se cada vez mais contra Jesus e, fazendo passar-lhes diante da alma visões sempre mais horrorosas, gritou diversas vezes à humanidade de Jesus: “Que? Tomarás também isto sobre ti? Sofrerás também o castigo por este crime? Como podes satisfazer por tudo isto?”

         Veio, porém, um estreito feixe de luz, da região onde o sol está entre as dez e onze horas, descendo sobre Jesus e nela vi surgir uma fileira de Anjos, que Lhe transmitiram força e ânimo.
A outra parte da gruta estava cheia de visões horrorosas dos nossos pecados e de maus espíritos, que O insultavam e agrediam; Jesus aceitou tudo; o seu Coração, o único que amava perfeitamente a Deus e aos homens, nesse deserto cheio de horrores, sentia com dilacerante tristeza e terror a atrocidade e o peso de todos esses pecados. Ai! vi tantas coisas ali! Nem um ano chegaria para contá-las!


Tentações da parte de Satanás.

        
Quando essa multidão de culpas e pecados acabou de passar diante da alma de Jesus, como um mar de horrores e após se haver ele oferecido, como sacrifício de explicação por tudo e chamado sobre si toda a onda de penas e castigos, suscitou-lhe Satanás inumeráveis tentações, como outrora no deserto; apresentou até numerosas acusações contra o puríssimo Salvador. “Que”! Disse ele, “Queres tomar tudo isto sobre ti e não és puro? Vê isto e aquilo e mais isto!” E então desenrolou, diante dos olhos imaculados da Divina Vítima, com impertinência infernal, uma multidão de acusações inventadas.
Acusou-O das faltas dos discípulos, dos escândalos que tinham dado, das perturbações que Ele trouxe ao mundo, renunciando aos costumes antigos. Satanás procedeu como o mais hábil e astuto fariseu. Acusou-O de ter sido a causa da matança dos inocentes por Herodes, dos perigos e sofrimentos de seus pais no Egito; acusou-O de não ter salvado da morte a João Batista, de ter desunido famílias, protegido pessoas de má fama, de não ter curado certos doentes, de ter causado prejuízo aos habitantes de Gergesa, porque permitiu aos possessos que entornassem a sua dorna de bebidas e porque causou a morte da manada de porcos no lago.

Imputou-Lhe as faltas de Maria Madalena, por não lhe ter impedido a recaída no pecado; acusou-O de ter abandonado a família e de ter dissipado o bem alheio; numa palavra, tudo de que Satanás podia ter acusado, na hora da morte, um homem comum, que tivesse feito tais ações externas, sem motivos sobrenaturais: tudo apresentou o tentador à alma abatida de Jesus, para amedrontá-la e desanimá-la; pois ignorava que Jesus era o Filho de Deus e tentou-O somente como ao mais justo dos homens.

Nosso Salvador deixou predominar a sua humanidade de tal modo, que quis sofrer também aquelas tentações, que assaltam mesmo os homens que têm uma morte santa, pondo em dúvida o valor interno das obras boas. Jesus permitiu, para esvaziar todo o cálice da agonia, que o tentador, ignorando-Lhe a divindade, Lhe apresentasse todas as suas obras de caridade como outras tantas dívidas, ainda não pagas, à graça divina.
O tentador censurou-O de querer expiar as culpas de outros, Ele, que não tinha méritos e que tinha ainda de satisfazer à justiça divina, pelas graças de tantas obras que considerava boas. A divindade de Jesus permitiu que o inimigo lhe tentasse a humanidade, como podia tentar um homem que quisesse atribuir ás suas obras um valor próprio, além daquele único que podem ter, da união com os méritos da morte redentora de nosso Senhor e Salvador.
O tentador apresentou-Lhe assim todas as suas obras de amor como atos privados de todo mérito, que antes O constituíam devedor de Deus, porque, segundo o acusador, o seu valor provinha antecipadamente, por assim dizer, dos méritos da Paixão, ainda não consumada e cujo valor infinito Satanás ainda não conhecia; portanto, não teria Jesus ainda satisfeito, na opinião do tentador, pelas graças recebidas para essas obras e disse, aludindo a estas: ”Ainda deves por esta obra e por aquela”.

Finalmente desenrolou mais um título de dívida diante de Jesus, afirmando que tinha recebido e gasto o preço da venda da propriedade de Maria Madalena em Magdalum; disse a Jesus: “Como ousaste desperdiçar o bem alheio, prejudicando assim aquela família?”
Vi a apresentação de tudo a cuja expiação Jesus se oferecera e senti com Ele todo o peso das numerosas acusações que o tentador levantou contra Ele; pois, entre os pecados do mundo que o Salvador tomou sobre si, vi também os meus inumeráveis pecados e do círculo das tentações veio também a mim, um como rio de acusações, nas quais se me patentearam todos os meus pecados de atos e omissões.

Eu, porém, olhava sempre para o meu Esposo celeste, durante essa apresentação dos pecados, gemendo e rezando com Ele e virava-me também com Ele para os Anjos consoladores. Ai! O Senhor torcia-se como um verme, sob o peso da dor e das angústias!
         Durante todas essas acusações de Satanás contra o puríssimo Salvador, somente com grande esforço consegui conter-me; mas, quando levantou a acusação da venda da propriedade de Madalena, não pude mais me conter e gritei-lhe: “Como podes chamar dívida o preço da venda dessa propriedade? Eu mesma vi o Senhor, com essa quantia, que lhe foi entregue por Lázaro, para obras de misericórdia, remir 27 pobres desamparados dos cárceres de Tirza”.

         A princípio estava Jesus de joelhos, rezando tranquilamente; mais tarde, porém, se lhe assustou a alma, à vista da atrocidade dos inumeráveis crimes e da ingratidão dos homens para com Deus; assaltaram-no angústia e dor tão veementes, que suplicou tremendo: “Meu Pai, se for possível, passe este cálice longe de mim. Meu Pai, tudo vos é possível: afastai este cálice de mim”. Depois sossegou e disse: “Não se faça, porém, a minha vontade, mas a vossa”. A sua vontade e a do Pai eram uma só; mas entregue à fragilidade da natureza humana, por amor, Jesus tremia à vista da morte.


Jesus volta para junto dos três, Apóstolos.


         Vi a caverna rodeada de formas assustadoras; todos os pecados, toda a iniqüidade, todos os vícios, todos os tormentos, toda a ingratidão, que o angustiavam; vi os terrores da morte, o horror que sentia, como homem, diante do imenso sofrimento expiatório, assaltando-O e oprimindo-O, sob as formas de espectros hediondos.
       Ele caiu por terra, torcendo as mãos; cobria-O o suor da angústia; tremia e estremecia. Levantou-se, mas os joelhos trementes quase não O suportavam; estava inteiramente desfigurado e irreconhecível, os lábios pálidos, o cabelo eriçado.

       Eram cerca de dez horas e meia, quando se levantou e se arrastou para junto dos três Apóstolos, cambaleando, caindo a cada passo, banhado num suor frio. Subiu à esquerda da caverna, e, passando por cima desta, chegou a um aterro, onde os discípulos estavam adormecidos, encostados um ao outro, abatidos pela fadiga, tristeza, inquietação e tentação.
       Jesus aproximou-se-lhes, como um homem angustiado a quem o terror impele para junto dos amigos e como um bom pastor que, transtornado, profundamente, vai para junto do rebanho, que sabe, ameaçado de um perigo próximo; pois não ignorava que também eles se achavam em angústia e tentação. Vi as horrorosas visões cercarem-no também nesse curto caminho.

       Encontrando os Apóstolos a dormir, torceu as mãos e caiu por terra ao lado deles, cheio de tristeza e fraqueza, dizendo: “Simão, dormes?” Então acordaram e levantaram-se; e Ele disse, no seu desamparo: “Então não pudestes velar uma hora comigo?”. Quando o viram tão assustado e desfigurado, pálido, cambaleando, banhado de suor, tremendo e estremecendo, quando O ouviram queixar-se com voz quase extinta, não sabiam mais o que pensar; se não lhes tivesse aparecido cercado de luz que bem conheciam, não teriam reconhecido.
       Disse-lhe João: “Mestre, que tendes? Quereis que chame os outros Apóstolos? Devemos fugir?” Jesus, porém, respondeu: “Ainda que vivesse mais 33 anos, ensinando e curando enfermos, não chegaria ao que tenho de cumprir até amanhã. Não chames os oito; deixai-os ali, porque não poderiam ver-me nesta aflição, sem escandalizar-se; cairiam em tentação, esquecer-se-iam de muitas coisas e duvidariam de Mim. – Vós, porém, que vistes o Filho do homem transfigurado, podeis vê-lo também no seu desamparo; mas vigiai e orai para não cairdes em tentação. O espírito é pronto, mas a carne é fraca”.

       Disse-o, referindo-se a eles e a si mesmo. Quis induzi-los, com essas palavras, à presença e dar-lhes a saber a luta da sua natureza humana contra a morte e a causa daquela fraqueza. Falou-lhes ainda sobre outras coisas, sempre abismado naquela tristeza e ficou cerca de um quarto de hora com eles. Em angústia mais e mais crescente voltou à gruta; eles, porém, estenderam para Ele as mãos chorando e caíram uns nos braços dos outros, perguntando: “Que é isto? Que lhe aconteceu? Está tão desolado!” Começaram a rezar, com as cabeças cobertas, cheios de tristeza.
       Tudo que acabo de contar, deu-se em mais ou menos uma hora e meia, depois que entraram no horto das Oliveiras. É verdade que Jesus disse, segundo o Evangelho: “Não podeis velar uma hora comigo?” Mas não se o pode entender ao pé da letra, segundo o nosso modo de falar, os três Apóstolos, que vieram com Jesus, tinham rezado no começo; mas depois adormeceram; conversando entre si com pouca confiança, caíram em tentação. Os oito Apóstolos, porém, que ficaram na entrada do horto, não dormiram. A angústia que se mostrara nessa noite em todos os discursos de Jesus, tornou-os muito perturbados e inquietos; erravam pelas vizinhanças do monte das Oliveiras para procurar um lugar de refúgio, em caso de perigo.

       Em Jerusalém houve nessa noite pouco movimento; os judeus estavam nas suas casas, ocupados com os preparativos para a festa. Os acampamentos dos forasteiros que tinham vindo para a festa, não estavam nas vizinhanças do monte das Oliveiras.
       Enquanto eu ia e voltava nesses caminhos, vi discípulos e amigos de Jesus, andando e conversando; pareciam inquietos, à espera de qualquer desgraça. A Mãe do Senhor, com Madalena, Marta, Maria, mulher de Cléofas, Maria Salomé e Salomé, assustadas por boatos, foram com amigas para fora da cidade, a fim de ter notícias de Jesus.
       Ali as encontraram Lázaro, Nicodemos, José de Arimatéia e alguns parentes de Hebron e procuraram sossegá-las; pois, tendo eles mesmos conhecimento, pelos discípulos, dos tristes discursos feitos por Jesus no Cenáculo, foram pedir informações a alguns fariseus conhecidos e destes souberam que não constava nada sobre tentativas imediatas contra o Senhor.
       Disseram por isso às mulheres que o perigo não podia ser grande, que tão próximo da festa não poriam as mãos em Jesus. É que não sabiam da traição de Judas. Maria, porém, contou-lhes o estado perturbado deste nos últimos dias ao sair do Cenáculo e advertiu-os de que com certeza fora trair ao Senhor, apesar das repreensões, pois era filho da perdição. Depois voltaram as santas mulheres à casa de Maria, mãe de Marcos.
        

         Anjos mostram a Jesus a enormidade dos seus sofrimentos e consolam-nO.


       Voltando à gruta, com toda a tristeza que o acabrunhava, Jesus prostrou-se por terra, com os braços estendidos e rezou ao Pai Celeste. Mas passou-lhe na alma nova luta, que durou três quartos da hora. Anjos vieram apresentar-Lhe em grande número de visões, tudo o que devia aceitar de sofrimentos, para expiar o pecado.
       Mostraram-lhe a beleza do homem antes do primeiro pecado, como imagem de Deus e quanto o pecado o tinha rebaixado e desfigurado. Mostraram-lhe como o primeiro pecado fora a origem de todos os pecados, a significação e essência da concupiscência e seus terríveis efeitos sobre as faculdades da alma e do corpo do homem, como também a essência e a significação de todas as penas contrárias à concupiscência.

       Mostraram-lhe os seus sofrimentos expiatórios primeiramente como sofrimentos de corpo e alma, suficientes para cumprir todas as penas impostas pela justiça divina à humanidade inteira, por toda a má concupiscência; e depois como sofrimento, que, para dar verdadeira satisfação, castigou os pecados de todos os homens na única natureza humana que era inocente: na humanidade do Filho de Deus, O qual, para tomar sobre si, por amor, a culpa e o castigo da humanidade inteira, devia também combater e vencer a repugnância humana contra o sofrimento e a morte.
       Tudo isto lhe mostraram os Anjos, ora em coros inteiros, com séries de imagens, ora separados, com as imagens principais; vi as figuras dos Anjos mostrando com o dedo elevado às imagens e percebi o que disseram, mas sem lhes ouvir as vozes.

       Não há língua que possa descrever o horror e a dor que invadiram a alma de Jesus, ao ver esta terrível expiação; pois não viu somente a significação das penas expiatórias contrárias à concupiscência pecaminosa, mas também a significação de todos os instrumentos do martírio, de modo que O horrorizou, não só a dor causada pelos instrumentos, mas também o furor pecaminoso daqueles que o inventaram, a malícia dos que os usavam e a impaciência daqueles que com eles tinham sido atormentados, pois pensavam sobre Ele todos os pecados do mundo. O horror desta visão foi tal, que lhe saiu do corpo um suor de sangue.
       Enquanto a humanidade de Jesus sofria e tremia, sob esta terrível multidão de sofrimentos, notei um movimento de compaixão nos Anjos; houve uma pequena pausa: parecia-me que desejavam ardentemente consolá-lo e que apresentavam as súplicas diante do trono de Deus. Era como se houvesse uma luta instantânea entre a misericórdia e a justiça de Deus e o amor que se estava sacrificando.

       Foi-me mostrada uma imagem de Deus, não como em outras ocasiões, num trono, mas numa forma luminosa menos determinada; vi a pessoa do Filho retirar-se na pessoa do Pai, como que lhe entrando no peito; a pessoa do Espírito Santo saindo do Pai e do Filho e estando entre Eles; e todos eram um só Deus. Quem poderá descrever exatamente uma tal visão?
       Não tive tanto uma visão com figuras humanas, como uma percepção interna, na qual me foi mostrado, por imagem, que a vontade divina de Jesus Cristo se retirava mais para o Pai, para deixar pesar sobre a sua humanidade todos os sofrimentos, que esta pedia ao Pai que afastasse; de modo que a vontade divina de Jesus, unida ao Pai, impunha à sua humanidade todos os sofrimentos que a vontade humana, pelas súplicas, queria afastar.
       Vi-O no momento da compaixão dos Anjos, quando estes desejavam consolar Jesus que, com efeito, teve neste instante um certo alívio. Depois desapareceu tudo e os Anjos, com sua compaixão consoladora, abandonaram o Senhor, cuja alma entrou em novas angústias.
      
        
         Mais imagens de pecados que atormentam o Senhor.


       Quando o Redentor, no monte das Oliveiras, se entregou, como homem verdadeiro e real, ao horror humano, à dor e à morte, quando se incumbiu de vencer esta repugnância de sofrer, que faz parte de todo o sofrimento, foi permitido ao tentador que lhe fizesse tudo o que costuma fazer a todo homem que quer sacrificar-se por uma causa santa.
       Na primeira agonia Satanás mostrara a Nosso Senhor, com raivosa zombaria, a enormidade da culpa do pecado, que quisera tomar a si e levou a audácia ao ponto de afirmar que a vida do mesmo Redentor não era livre de pecados.
       Na segunda agonia viu Jesus a imensidade da Paixão expiatória, em toda a sua realidade e amargura. Esta apresentação foi feita pelos Anjos; pois não compete a Satanás mostrar a possibilidade da expiação, nem convém que o pai da mentira e do desespero mostre as obras da misericórdia divina.

       Tendo, porém, Jesus resistido a todas essas tentações, pelo abandono completo à vontade do Pai Celeste, foi-Lhe apresentada à alma uma nova série terrível de visões assustadoras; a dúvida e inquietação que no coração do homem precedem a todo o sacrifício, a pergunta amarga: Qual será o resultado, o proveito deste sacrifício? A visão de um futuro assustador atormentou-Lhe então o Coração amoroso.
       Deus mergulhou o primeiro homem, Adão, num profundo sono, abriu-lhe o lado, tomou-lhe uma das costelas, formou dela Eva, a mulher, a mãe de todos os vivos e apresentou-a a Adão. Então disse este: “Este é o osso dos meus ossos e a carne da minha carne; o homem deixará pai e mãe, para aderir à sua mulher e serão dois numa só carne”.

       Do matrimônio foi escrito: ”Este sacramento é grande, digo, porém, em Jesus Cristo e na Igreja”; Pois Jesus Cristo, o novo Adão, quis também se submeter a um sono, o sono da morte na Cruz; quis também deixar que lhe abrissem o lado, para que deste fosse feita a nova Eva, sua esposa imaculada, a Igreja, mãe de todos os vivos; quis dar-lhe o sangue da redenção, a água da purificação e o Espírito Santo: os três que dão testemunho na terra; quis dar-lhe os santos Sacramentos, para que fosse uma esposa pura, santa e imaculada; quis ser-lhe a cabeça e nós devíamos ser-lhe os membros, sujeitos à cabeça, devíamos ser os ossos dos seus ossos, carne da sua carne.
       Aceitando a natureza humana, para sofrer a morte por nós, tinha Jesus abandonado pai e mãe e unira-se a sua esposa, à Igreja; tornou-se uma carne com ela, alimentando-a com o santíssimo Sacramento do Altar, no qual se une a nós dia após dia; quis permanecer presente na terra com sua esposa, a Igreja, até nos unirmos todos a Ele no Céu e disse: “As portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Para praticar esse incomensurável amor para com os pecadores, tornara-se homem e irmão dos pecadores, tomando sobre si a pena de toda a culpa.

       Tinha visto com grande tristeza a imensidade desta culpa e da paixão expiatória e contudo entregara-se voluntariamente à vontade do Pai celeste, como vítima expiatória. Neste momento, porém, viu Jesus os sofrimentos, as perseguições, as feridas da futura Igreja, sua esposa, que estava para remir tão caro, com o seu próprio sangue: viu a ingratidão dos homens.

       Apresentaram-se-Lhe diante da alma todos os futuros sofrimentos dos Apóstolos, discípulos e amigos, a Igreja primitiva, tão pouco numerosa, depois também as heresias e cismas, que nasceram á medida que a Igreja crescia, repetindo a primeira queda do homem pelo orgulho e desobediência, pelas diversas formas de vaidade e falsa justiça.
       Viu a tibieza, a corrupção e malícia de um número infinito de cristãos, as mentiras e a esperteza enganadora dos mestres orgulhosos, os crimes sacrílegos de todos os sacerdotes viciosos e todas as horríveis conseqüências: A abominação e desolação do reino de Deus sobre a terra, neste santuário da humanidade ingrata, o qual estava: para fundar e remir com indizíveis sofrimentos, pelo preço de seu sangue e sua vida.
       Vi passar diante da alma do nosso pobre Jesus, em séries mensais de visões, os escândalos de todos os séculos, até o nosso tempo e mesmo até o fim do mundo, em todas as formas do erro doentio, da intriga orgulhosa, do fanatismo furioso, dos falsos profetas, da obstinação e malícia herética.

       Todos os apóstatas, os heresiarcas, os reformadores de aparência santa, os sedutores e os seduzidos insultavam e torturavam-na, como se não tivesse sofrido bastante, nem sido bem crucificado a seu ver e conforme o desejo orgulhoso e presunção vaidosa de cada um; rasgavam e partiam, disputando, a túnica sem costuras da Igrejacada um queria tê-Lo como Redentor de modo diferente do que se tinha mostrado no seu amor.
       Muitos O maltratavam, insultavam, negavam-nO. Viu inúmeros alçarem os ombros e sacudirem a cabeça, afastando-se dos braços que lhes estendia para salvá-los e precipitar-se no abismo, que os tragou.

       Viu um número infinito de outros, que não ousavam negá-lO em alta voz, mas que se afastavam, por desgosto das aflições da Igreja, como o levita que se afastou do pobre viajante que caíra nas mãos dos salteadores. Viu-os separar-se de sua esposa ferida, como filhos covardes e infiéis abandonam as mães de noite, quando a casa é assaltada por ladrões e assassinos, aos quais por descuido abriram a porta.

       Viu-os seguirem os despojos levados ao deserto, os vasos de ouro e os colares quebrados. Viu-os separados da videira verdadeira, pousarem sob as videiras silvestres; viu-os como ovelhas extraviadas, abandonadas aos lobos, conduzidas a mau pasto por mercenários e não querendo entrar no aprisco do bom Pastor, que deu a vida por suas ovelhas.
       Viu-os errarem, sem pátria, no deserto, não querendo ver a sua cidade, colocado sobre o monte e que não pode ficar escondida. Viu-os em discórdia, agitados pelo vento para lá e para cá, nas areias do deserto, mas sem querer ver a casa de sua esposa, a Igreja fundada sobre a pedra, com a qual prometeu ficar até o fim do mundo e contra a qual as portas do inferno não prevalecerão.

       Não queriam entrar pela porta estreita, para não baixar a cabeça. Viu-os seguir a outros, que não entraram no aprisco pela porta verdadeira. Construíram, sobre a areia, cabanas mudáveis e diferentes umas das outras, que não tinham nem altar nem sacrifício, porém cata-ventos nos tetos e suas doutrinas mudavam-nas com os ventos; contradiziam-se uns aos outros, não se entendiam, nem tinham estadia permanente.
       Viu-os destruírem muitas vezes as cabanas, lançado os destroços contra a pedra angular da Igreja, que ficou inabalável. Viu muitos que, apesar da escuridão nas suas moradas, não queriam aproximar-se da luz, posta no candelabro, na casa da esposa, mas erravam, com os olhos cerrados, em redor do jardim cercado da Igreja, de cujos perfumes ainda viviam. Estendiam as mãos a imagens nebulosas e seguiam astros errantes, que os conduziam a poços sem água e mesmo na margem das fossas, não davam ouvido à voz do Esposo que os chamava e esfomeados riam-se ainda, com orgulho arrogante, dos servos mensageiros, que os convidavam para o banquete nupcial. Não queriam entrar no jardim, por temerem os espinhos da cerca - viva.

       Viu-os o Senhor, inebriados de amor próprio, morrer de fome, por não ter trigo e de sede, por não ter vinho; cegos pela sua própria luz, chamavam de invisível a Igreja do Verbo encarnado. Jesus viu-os todos com tristeza; quis sofrer por todos que não queriam segui-lo, carregando a cruz da Igreja, sua esposa, à, qual se deu no SS. Sacramento, na sua cidade colocada no cimo do monte, que não pode ficar escondida, na sua Igreja, fundada sobre a pedra e contra a qual as portas do inferno não prevalecerão.
       Todas estas inumeráveis visões da ingratidão dos homens, do abuso feito da morte expiatória de meu Esposo Celeste, vi-as passar diante da alma contristada do Senhor, ora variando, ora em dolorosa repetição; vi Satanás, em diversas figuras assustadoras, arrancando e estrangulando, diante dos olhos de Jesus, os homens remidos pelo seu sangue e até mesmo homens ungidos com o seu santo Sacramento.
       O Salvador viu com grande amargura toda a ingratidão, toda a corrupção, tanto dos primeiros cristãos, como dos que se lhe seguiram, dos presentes e dos futuros. Entre estas aparições dizia o tentador continuamente à humanidade do Cristo: “Eis aí, por tal ingratidão queres sofrer?” Estas imagens passaram, em contínua repetição diante do Senhor e com tanta impetuosidade, com tanto horror e escárnio pesaram sobre Jesus, que angústia, indizível lhe oprimia a natureza humana.
      
       Jesus Cristo, o Filho do Homem, estendia e torcia as mãos, caindo como que oprimido e pôs-se de novo de joelhos. A vontade humana do Redentor travava uma luta terrível contra a repugnância de sofrer tanto por uma raça tão ingrata, que o sangue lhe saiu do corpo, em grossas gotas de suor e correu em torrentes sobre a terra. Naquela aflição olhou em redor de si como para pedir socorro e parecia chamar o céu, a terra e os astros do firmamento pro testemunhas de seu sofrimento. Parecia-me ouvi-lo exclamar: “É possível suportar tal ingratidão? Sois testemunhas do que sofro”.
       Então foi como se a lua e as estrelas se aproximassem num instante; senti nesse momento que se tornava mais claro. Observei então a lua, o que antes não fizera, e pareceu-me de todo diferente: ainda não era toda cheia e parecia maior do que em nossa terra. No meio vi uma mancha escura, semelhante a um disco posto diante dela e no meio havia uma abertura, pela qual brilhava a luz para o lado onde a lua ainda não estava cheia. A mancha escura era como um monte e em redor da lua havia ainda um círculo luminoso, como um arco-íris.

       Jesus, na sua aflição, levantou a voz por alguns momentos, em alto pranto. Vi os Apóstolos levantarem-se assustados, com as mãos postas erguidas, escutarem e querendo correr para junto do Mestre. Mas Pedro reteve a João e Tiago, dizendo: “Ficai, eu vou lá”. Vi-o correr e entrar na gruta. “Mestre, disse ele, que tendes”?, e parou, tremendo, ao vê-lo todo ensangüentado e angustiado. Jesus, porém, não lhe respondeu e pareceu não lhe notar a presença. Então voltou Pedro para junto dos outros dois e suspirava. Por isso lhes aumentou ainda a tristeza; sentaram-se velando as cabeças e rezaram entre lágrimas.
       Eu, porém, voltei a meu Esposo Celeste, em sua dolorosa agonia. As imagens hediondas da ingratidão e dos abusos dos homens futuros, cuja culpa tomara sobre si, a cuja pena se entregara, arremessaram-se contra Ele, cada vez mais terríveis e impetuosas. De novo lutou contra a repugnância da natureza humana de sofrer; diversas vezes o ouvi exclamar: “Meu Pai, é possível sofrer por todos estes? Pai, se este cálice não pode ser afastado de mim, seja feita a vossa vontade”.

       No meio de todas estas visões de pecados contra a divina misericórdia, vi Satanás em diversas formas hediondas, conforme a espécie dos pecados. Ora aparecia como homem alto e negro, ora sob a figura de tigre, ora como raposa ou lobo, como dragão ou serpente; não eram, porém, as figuras naturais desses animais, mas apenas as feições salientes da respectiva natureza, misturadas com outras formas horríveis.
       Não havia nada ali que representasse figura completa de uma criatura, eram somente símbolos de decadência, de abominação, de horror, da contradição e do pecado: símbolos do demônio. Essas figuras diabólicas empurravam, arrastavam, despedaçavam, e estrangulavam, à vista de Jesus, inumeráveis multidões de homens, por cujo resgate, das garras de Satanás, o Salvador entrara no doloroso caminho da Cruz. No principio não vi tão freqüentemente a serpente, mas no fim a vi gigantesca, com uma coroa na cabeça, arremessar-se com força terrível contra Jesus e com ela, de todos os lados, exércitos de todas as gerações e classes.
       Armados de todos os meios de destruição, instrumentos de martírio e armas, lutavam ora uns contra os outros, ora com terrível raiva contra Jesus. Era um espetáculo horrível. Carregavam-nO de insultos, maldições e imundícies, cuspiam-Lhe, batiam-Lhe, traspassavam-nO. As suas armas, espadas e lanças, iam e vinham, como os manguais dos debulhadores numa imensa eria; todos desencadeavam a sua fúria sobre o grão de trigo celeste, caído na terra para nela morrer e depois alimentar eternamente todos os homens com o pão da vida, com fruto imensurável.

       Vi Jesus no meio destas coortes furiosas, entre as quais me parecia haver muitos cegos; estava tão alterado, como se realmente sentisse os golpes dos agressores. Vi-O cambalear de um lado para o outro; ora caia, ora de novo se levantava. Vi a serpente no meio de todos esses exércitos, instigando-os continuamente; batia ora aqui, ora ali, com a cauda, estrangulando, despedaçando e devorando todos que com ela derrubava.
       Tive a explicação de que a multidão dos exércitos que lutavam contra Nosso Senhor, era o número imenso daqueles que maltrataram de muitíssimos modos a Jesus Cristo, seu Redentor, real e substancialmente presente no Santíssimo Sacramento, com divindade e humanidade, com corpo e alma, com carne e sangue, debaixo das espécies de pão e vinho.

       Avistei entre esses inimigos de Jesus todas as espécies de profanadores do SS. Sacramentopenhor vivo de sua continua presença pessoa na Igreja Católica. Vi com horror todos esses ultrajes, desde o descuido, irreverência, abandono, até o desprezo, abuso e sacrilégios os mais horrorosos, o culto dos ídolos deste mundo, orgulho e falsa ciência e por outro lado, heresia e descrença, fanatismo, ódio e sangrenta perseguição.
       Vi entre esses inimigos de Jesus todas as espécies de homens: até cegos e aleijados, surdos e mudos e mesmo crianças; cegos, que não queriam ver a verdade; coxos, que por preguiça não queriam segui-lO; surdos, que não queriam ouvir-Lhe as exortações e advertências; mudos, que não queriam lutar por Ele nem com a palavra; crianças, desviadas na companhia dos pais e mestres mundanos e esquecidos de Deus, nutridos pela concupiscência, ébrias de ciência falsa, sem gosto das coisas divinas ou já perdidas por falta delas, para sempre.

       Entre as crianças, cujo aspecto me afligiu particularmente, porque Jesus amava tanto as crianças, vi também muitos meninos ajudantes da Santa Missa, pouco instruídos, mal educados e desrespeitosos, que nem respeitavam a Jesus Cristo na mais santa cerimônia. Em parte eram culpados os mestres e os reitores das Igrejas.
       Vi com espanto que também muitos sacerdotes, de todas as hierarquias contribuíam para o desrespeito de Jesus no SS. Sacramento, até alguns que se tinham por crentes e piedosos. Quero mencionar, entre estes infelizes, apenas uma classe: vi ali muitos que acreditavam, adoravam e ensinavam a presença de Deus vivo no SS. Sacramento, mas na sua conduta não Lhe manifestavam fé e respeito: pois descuidavam-se do palácio, do trono, da tenda, da residência, dos ornamentos do Rei do Céu e da Terra, isto é, não cuidavam da Igreja, do altar, do tabernáculo, do cálice, do ostensório de Deus vivo e dos vasos, utensílios, ornamentos, vestes para uso e enfeite da casa do Senhor.

       Tudo estava abandonado e se desfazia em poeira, mofo e imundície de muitos anos; o culto divino era celebrado com pressa e descuido e se não profanado internamente, pelo menos degradado exteriormente. Tudo isso, porém, não era conseqüência de verdadeira pobreza, mas de indiferença, preguiça, negligencia, preocupação com interesses vãos deste mundo, muitas vezes também de egoísmo e morte espiritual, pois vi tal descuido também em Igrejas ricas e abastadas; vi muitos até, nas quais o luxo mundano e inconveniente e sem gosto substituíra os magníficos e veneráveis monumentos de uma época mais piedosa, para esconder, sob aparências mentirosas e cobrir com um disfarce brilhante o descuido, a imundície, a desolação e o desperdício.
       O que faziam os ricos, por vaidosa ostentação, logo imitaram estupidamente os pobres, por falta de simplicidade. Não pude deixar de pensar nesta ocasião na Igreja do nosso pobre convento, cujo belo altar antigo, esculpido artisticamente em pedra, tinham também coberto com uma construção de madeira e pintura tosca, imitando mármore, o que sempre me fez muita pena.

       Todas essas ofensas feitas a Jesus no SS. Sacramento, vi-as aumentadas por numerosos reitores das Igrejas, que não tinham esse sentimento de justiça de repartir pelo menos o que possuíam com o Salvador, presente sobre o Altarque se entregou por eles à morte e se lhes deu todo inteiro no SS. Sacramento.
       Em verdade, mesmo os mais pobres estavam muitas vezes melhor instalados nas suas casas do que o Senhor nas Igrejas. Ai! como esta falta de hospitalidade entristecia Jesus, que se lhes tinha dado como alimento espiritual! Pois não é preciso ser rico para hospedar aquele que recompensa ao cêntuplo o copo de água oferecido a quem tem sede.
       Oh! Quanta sede tem ele de nós! Não terá acaso motivo de queixar-se de nós, se o copo estiver sujo e a água também? Por tais negligências vi os fracos escandalizados, o SS. Sacramento profanado, as Igrejas abandonadas, os sacerdotes desprezados e em pouco tempo passou essa negligência também às almas dos fiéis daquelas paróquias: não guardavam mais puro o tabernáculo do coração, para receber nele o Deus vivo, do que o tabernáculo dos altares.

       Para agradar e adular os príncipes e grandes deste mundo, para satisfazer-lhes os caprichos e desejos mundanos, vi tais administradores de Igrejas fazer todos os esforços e sacrifícios; mas o Rei do Céu e da Terra estava deitado, como o pobre Lázaro, diante da porta, desejando em vão as migalhas de caridade que ninguém lhe dava. Tinha apenas as chagas que nós lhe fizemos e que lhe lambiam os cães, isto é, os pecadores reincidentes, que, semelhantes a cães, vomitam e depois voltam para comer o vômito.
       Se falasse um ano inteiro, não podia contar todas as afrontas feitas a Jesus e que deste modo conheci. Vi os autores dessas afrontas agredirem a Nosso Senhor com diferentes armas, conforme a espécie de seus pecados.
       Vi clérigos irreverentes, de todos os séculos, sacerdotes levianos, em pecado, sacrílegos celebrando o Santo Sacrifício e distribuindo a sagrada Eucaristia; vi multidões de comungastes tíbios e indignos. Vi homens numerosos para os quais a fonte de toda a benção, o mistério de Deus vivo, se tornara uma palavra de maldição, fórmula de maldição; guerreiros furiosos e servidores do demônio, profanando os vasos sagrados e jogando fora as hóstias sagradas ou maltratando-as horrivelmente e até abusando do Sumo Bem, por uma hedionda e diabólica idolatria.

       Ao lado destes brutais e violentos, vi inúmeras outras impiedades, menos grosseiras, mas do mesmo modo abomináveis. Vi muitas pessoas, seduzidas por mau exemplo e ensino perfilo, perderem a fé na presença real de Jesus na Eucaristia e deixarem de adorar nela humildemente seu Salvador.
       Vi nestas multidões grande números de professores indignos, que se tornaram heresiarcas; lutavam a princípio uns contra os outros e depois se uniam, para atacar furiosamente a Jesus no SS. Sacramento, na sua igreja. Vi um grupo numeroso destes heresiarcas negar e insultar o sacerdócio da Igreja, contestar e negar a presença de Jesus Cristo neste mistério à Igreja e havê-lo esta guardado fielmente; pela sedução Lhe arrancaram do coração um número imenso de homens, pelos quais tinha derramado o seu sangue.

       Ai! Era um aspecto horrível: pois vi a Igreja como corpo de Jesus, que reunira, pela dolorosa Paixão, os membros separados e dispersos; vi todas aquelas comunidades e famílias e todos os seus descendentes, separados da Igreja, serem arrancados, como grandes pedaços de carne, do corpo vivo de Jesus, ferindo e despedaçando-O dolorosamente.
       Ai! Ele os seguia com olhares tão tristes, lastimando-lhes a perdição. Ele, que no SS. Sacramento se nos tinha dado como alimento, para unir ao corpo da Igreja, sua Esposa, os homens separados e dispersos, viu-se despedaçado e dividido nesse mesmo corpo de sua Esposa, pelos maus frutos da árvore da discórdia.
       A mesa da união no SS. Sacramento, suas mais sublime obra de amor, na qual quis ficar eternamente com os homens, tornara-se, pela malícia dos falsos doutores, fonte de separação. No lugar mais conveniente e salutar para união de muitos, na mesa sagrada, onde o próprio Deus vivo é o alimento das almas, deviam os seus filhos separar-se dos infiéis e hereges, para não se tornarem réus de pecado alheio.

       Vi que deste modo povos inteiros se Lhe arrancaram do coração, privando-se do tesouro de todas as graças, que Ele deixara à Igreja. Era horrível vê-los separarem-se, só poucos no princípio, mas esse se voltaram como povos grandes, em hostilidade uns contra os outros, por estarem separados no Santíssimo.
       Por fim vi todos que estavam separados da Igreja, embrutecidos e enfurecidos, em descrença, superstição, heresia, orgulho e falsa filosofia mundana, unidos em grandes exércitos, atacando e devastando a Igreja e no meio deles, a serpente, instigando e estrangulando-os. Ai! Era como se Jesus se visse e sentisse despedaçado em inúmeras fibras, das mais delicadas.

       O Senhor viu e sentiu nessas angústias toda a árvore venenosa do cisma, com todos os respectivos ramos e frutos, que continuam a dividir-se até o fim do mundo, quando o trigo será recolhido ao celeiro e a palha será lançada ao fogo.
       Esta horrorosa visão era tão terrível e hedionda, que meu Esposo celeste me apareceu e, colocando a mão misericordiosa sobre o meu peito, disse: “Ninguém viu isto ainda e o teu coração se despedaçaria de dor, se eu não o sustentasse”.
       Vi então o sangue rolando, em largas e escuras gotas, sobre o pálido semblante do Senhor; o seu cabelo, em geral liso e repartido no meio da cabeça, estava conglutinado com o sangue, eriçado e desgrenhado, a barba ensangüentada e em desordem.

       Foi depois da última visão, na qual os exércitos inimigos O despedaçaram, que saiu da caverna, quase fugindo e voltou para junto dos discípulos. Mas não tinha o andar firme; andava como um homem coberto de feridas e curvado sob um fardo pesado, como quem tropeça a cada passo. Chegando junto dos três Apóstolos, viu que não se tinham deitado para dormir, como da primeira vez; estavam sentados, as cabeças veladas e apoiadas sobre os joelhos, posição em que vejo muitas vezes o povo daquele país, quando estão de luto ou querem rezar.
       Adormeceram vencidos pela tristeza, medo e fadiga. Quando Jesus se aproximou, tremendo e gemendo, acordaram, mas ao vê-lo diante de si, na claridade do luar, com o peito encolhido, o semblante pálido e ensangüentado, o cabelo desgrenhado, fitando-os com olhar triste, não O reconheceram por alguns momentos, com a vista fatigada, pois estava indizivelmente desfigurado.

       Jesus, porém, estendeu os braços; então se levantaram depressa e, segurando-O sob os braços, ampararam-nO carinhosamente. Disse-lhes que no dia seguinte os inimigos O matariam; dai a uma hora O prenderiam, conduziriam ao tribunal, seria maltratado, insultado, açoitado e finalmente entregue à morte mais cruel.
       Com grande tristeza lhes disse tudo o que teria de sofrer até a tarde do dia seguinte e pediu que consolassem sua Mãe e Madalena. Esteve assim diante deles por alguns minutos, falando-lhes; mas não responderam, porque não sabiam o que dizer, de tal modo as palavras e o aspecto do Mestre os tinha assustado; pensavam até que estivesse em delírio.
       Quando, porém, quis voltar à gruta, não tinha mais força para andar; vi que João e Tiago O conduziram e, depois de ter entrado na gruta, voltaram. Eram cerca de onze horas e um quarto.

       Durante essas angústias de Jesus, vi a SS. Virgem também cheia de tristeza e angústia, em casa de Maria, mãe de Marcos. Estava com Madalena e a mãe de Marcos, num jardim ao lado da casa; prostrara-se de joelhos, sobre uma pedra. Diversas vezes perdeu os sentidos exteriormente, pois viu grande parte dos tormentos de Jesus. Já enviara mensageiros a Jesus, para ter noticias, mas não podendo, na sua ânsia, esperar-lhe a volta, saiu com Madalena e Salomé para o vale de Josafá.
       Ela andava velada e estendia muitas vezes as mãos para o monte das Oliveiras, porque via em espírito, Jesus banhado em suor de sangue e ela parecia, com as mãos estendidas, querer enxugar-lhe o rosto. Vi Jesus, comovido por esses caridosos impulsos da alma de sua Mãe, olhar para a direção em que Maria se achava, como para pedir socorro. Vi esses movimentos de compaixão em forma de raios luminosos, que emanavam de um para o outro.
       O Senhor pensou também em Madalena, percebeu-lhe comovido a dor e olhou também para ela; por isso mandou também os discípulos que a consolassem, pois sabia que, depois do amor de sua Mãe, o de Madalena era o mais forte e tinha também visto o que ela teria de sofrer por Ele e que nunca mais O ofenderia pelo pecado.

       Neste momento, cerca de 11 horas e 15 minutos, voltaram os oito Apóstolos à cabana de folhagem, no horto de Getsêmani; ali conversaram ainda e finalmente adormeceram. Estavam muito assustados e desanimados, em veementes tentações. Cada um tinha procurado um lugar para esconder-se e perguntaram uns aos outros inquietamente: “Que faremos, se o matarem? Abandonamos tudo quanto tínhamos e ficamos pobres e expostos ao escárnio do mundo. Fiamo-nos inteiramente nEle e ei-Lo agora tão impotente e abatido, que não podemos mais procurar nEle consolação”.
       Os outros discípulos, porém, erraram no princípio de um lado para outro e depois terem ouvidos várias notícias das últimas palavras assustadoras de Jesus, retiraram-se, pela maior parte, para Betfagé.


         Visões consoladoras; Anjos confortam Jesus.


       Vi Jesus rezando ainda na gruta e lutando contra a repugnância da natureza humana ao sofrimento. Estava exausto de fadiga e abatido e disse: “Meu Pai, se é a vossa vontade, afastai de mim este cálice. Mas faça-se a vossa vontade e não a minha”.
       Então se abriu o abismo diante dEle e apareceram-Lhe os primeiros degraus, do Limbo, como na extremidade de uma vista luminosa. Viu Adão e Eva, os patriarcas, os profetas, os justos, os parentes de sua Mãe e João Batista, esperando-Lhe a vinda, no mundo inferior, como um desejo tão violento, que essa visa Lhe fortificou e reanimou o coração amoroso. Pela sua morte devia abrir o Céu a esses cativos; devia tira-los da cadeia onde languesciam à espera.
       Tendo visto, com profunda emoção, esses Santos dos tempos antigos, apresentaram-Lhe os Anjos, todas as multidões de bem-aventurados do futuro que, juntando seus combates aos méritos da Paixão do Cristo, deviam unir-se por Ele ao Pai Celeste. Era uma visão indizivelmente bela e consoladora. Todos agrupados, segundo a época, classe e dignidade, passaram diante do Senhor, vestidos dos seus sofrimentos e obras.

       Viu a salvação e santificação sair, em ondas inesgotáveis, da fonte da Redenção, aberta pela sua morte. Os Apóstolos, os discípulos, as virgens e santas mulheres, todos os mártires, confessores e eremitas, papas e bispos, grupos numerosos de religiosos, em uma palavra: um exército inteiro de bem-aventurados apresentou-se-Lhe à vista.
       Todos traziam na cabeça coroas triunfais e as coroas variavam de forma, de cor, de perfume e de virtude, conforme a diferença dos respectivos sofrimentos, combates e vitórias que lhes tinham proporcionado a glória eterna. Toda a vida e todos os atos, todos os méritos e toda força, assim como toda glória e todo o triunfo dos Santos provinham unicamente de sua união aos méritos de Jesus Cristo.

       A ação e influência recíproca que todos estes Santos exerciam uns sobre os outros, a maneira por que hauriam a graça de uma única fonte, do santo Sacramento e da Paixão do Senhor, apresentava um espetáculo singularmente tocante e maravilhoso. Nada parecia casual neles; as obras, o martírio, as vitórias, a aparência e os vestuários: tudo, apesar de bem diferente, se fundia numa harmonia e unidade infinitas; e essa unidade na variedade era produzida pelos raios de um único sol, pela Paixão de Nosso Senhor, do Verbo feito carne, o qual era a vida, a luz dos homens, que ilumina as trevas, as quais não o compreenderam.         
       Foi a comunidade dos futuros Santos que passou diante da alma do Salvador, que se achava colocado entre o desejo dos patriarcas e o cortejo triunfal dos bem-aventurados futuros; esses dois grupos unindo-se e completando-se de certo modo, cercavam o coração do Redentor, cheio de amor, como uma coroa de vitória. Essa visão, inexprimivelmente tocante, deu à alma de Jesus um pouco de consolação e força.

       Ah! Ele amava tanto seus irmãos e suas criaturas, que teria aceito de boa vontade todos os sofrimentos, aos quais se entregaria pela redenção até de uma só alma. Como essas visões se referissem ao futuro, pairavam em certa altura.
       Mas essas imagens consoladoras desapareceram e os Anjos mostraram-lhe a Paixão, mais perto da terra, porque já estava próximo. Estes Anjos eram muito numerosos.
       Vi todas as cenas apresentadas muito distintamente diante dele, desde o beijo de Judas, até à última palavra na Cruz; vi lá tudo o que vejo nas minhas meditações da Paixão, a traição de Judas, a fuga dos discípulos, os insultos perante Anás e Caifás, a negação de Pedro, o tribunal de Pilatos, a decisão diante de Herodes, a flagelação, a coroação de espinhos, a condenação à morte, o transporte da cruz, o encontro com a Virgem SS. no caminho do Calvário, o desmaio, os insultos de que os carrascos O cobriram, o véu de Verônica, a crucifixão, o escárnio dos fariseus, as dores de Maria, de Madalena e João, a lançada no lado, em uma palavra, tudo passou diante da alma de Jesus, com as menores circunstâncias.

       Vi como o Senhor, na sua angústia, percebia todos os gestos, entendia todas as palavras, percebia tudo que se passava nas almas. Aceitou tudo voluntariamente, sujeitou-se a tudo por amor dos homens. O que mais O entristecia era ver-se pregado na Cruz num estado de nudez completa, para explicar a impudicícia dos homens: implorava com instância a graça de livrar-se daquele opróbrio e que pelo menos Lhe fosse concedido um pano para cingir os rins; e vi ser atendido, não pelos carrascos, mas por um homem compassivo. Jesus viu e sentiu profundamente a dor da Virgem SS., que pela união interior aos sofrimentos do seu Divino Filho, caíra sem sentidos nos braços das amigas, no Vale de Josafá.
       No fim das visões da Paixão, Jesus caiu na Terra, como um moribundo; os Anjos e as visões da Paixão desapareceram; o suor do sangue brotava mais abundante; vi-O escoar-se através da veste amarela encostado ao corpo. A mais profunda escuridão reinava na caverna. Vi então um Anjo descendo para junto de Jesus: era maior, mais distinto e mais semelhante ao homem do que os eu vira antes.

       Estava vestido como um sacerdote, de uma longa veste flutuante, ornada de franjas e trazia na mão, diante de si, um pequeno vaso, da forma do cálice da última Ceia. Na abertura deste cálice se via um pequeno corpo oval, do tamanho de uma fava, que espargia uma luz avermelhada. O Anjo estendeu-Lhe a mão direita e pairando diante de Jesus, levantou-se; pôs-lhe na boca aquele alimento misterioso e fê-Lo beber do pequeno cálice luminoso. Depois desapareceu.
       Tendo aceitado o cálice dos sofrimentos e recebido nova força. Jesus ficou ainda alguns minutos na gruta, mergulhado em meditação tranqüila e dando graças ao Pai Celeste. Estava ainda aflito, mas confortado de modo sobrenatural, a ponto de poder andar para junto dos discípulos sem cambalear e sem se curvar sob o peso da dor. Estava ainda pálido e desfigurado, mas o passo era firme e decidido.Enxugara o rosto com um sudário e pusera em ordem os cabelos, que lhe pendiam sobre os ombros, úmidos de suor e conglutinados de sangue.

       Quando saiu da gruta, vi a lua como dantes, com a mancha singular que formava o centro e a esfera que a cercava, mas a claridade dela e das estrelas era diferente da que tinham dantes, por ocasião das grandes angústias do Senhor. A luz era agora mais natural.
       Quando Jesus chegou junto aos discípulos, estavam estes deitados, como na primeira vez, encostados ao muro do aterro, com a cabeça velada e dormiam. O Senhor disse-lhes que não era tempo de dormir, mas que deviam velar e orar“Esta é a hora em que o Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores, disse, levantai-vos e vamos: o traidor está perto; melhor lhe seria que não tivesse nascido”.
       Os Apóstolos levantaram-se assustados e olharam em roda de si inquietos. Depois de um pouco tranqüilo, Pedro disse calorosamente: “Mestre, vou chamar os outros, para vos defendermos”. Mas Jesus mostrou-lhes a alguma distância, no vale, do outro lado da torrente de Cedron, uma tropa de homens armados que se aproximavam com archotes e disse-lhes que um deles O tinha traído. Os Apóstolos julgavam-no impossível.

       O Mestre falou-lhes ainda com calma, recomendando-lhes de novo que consolassem a Virgem SS. e disse: “Vamos ao encontro deles. Vou entregar-me sem resistência nas mãos dos meus inimigos”. Então saiu do horto das Oliveiras, com os três Apóstolos e foi ao encontro dos soldados, no caminho que ficava entre o jardim e o horto de Getsêmani.
       Quando a SS. Virgem voltou a si, nos braços de Madalena e Salomé, alguns discípulos, que viram aproximar-se os soldados, vieram a ela e reconduziram-na à casa de Maria, mãe de Marcos. Os soldados tornaram um caminho mais curto do que o que Jesus tinha seguido, vindo do Cenáculo.

       A gruta onde Jesus tinha rezado nessa noite, não era aquela na qual estava acostumado a rezar, no monte das Oliveiras, ia geralmente a uma caverna mais afastada, onde, depois de ter maldito a figueira infrutífera, rezara numa grande aflição, com os braços estendidos e apoiados sobre um rochedo.
       Os traços do corpo e das mãos ficaram-Lhe impressos na pedra e foram mais tarde venerados; mas não se sabia então em que ocasião o prodígio fora feito. Vi diversas vezes semelhantes impressões feitas em pedras, seja por profetas do Velho Testamento, seja por Jesus, Maria ou algum dos Apóstolos; vi também as do corpo de Santa Catarina de Alexandria, no monte Sinai.
       Essas impressões não parecem profundas, mas semelhantes às que ficam, pondo-se a mão sobre uma massa consistente.
      
        
         Judas e sua tropa.


         Judas não esperava que a traição tivesse as conseqüências que se lhe seguiram. Queria ganhar a recompensa prometida e mostrar-se agradável aos fariseus, entregando-lhes Jesus, mas não pensara no resultado, na condenação e crucifixão do Mestre; não ia tão longe em seus desígnios.
       Era só o dinheiro que lhe preocupava o espírito e já havia muito tempo travara relações com alguns fariseus e Saduceus astutos que, com lisonjas, o incitavam à traição. Estava aborrecido da vida fatigante, errante e perseguida, que levavam os Apóstolos.
       Nos últimos meses furtara continuamente as esmolas, de que, era depositário e a cobiça, irritada pela liberalidade de Madalena quando derramou perfumes sobre Jesus, impeliu-o finalmente ao crime. Tinha sempre esperado um reino temporal de Jesus e uma posição brilhante e lucrativa nesse reino; como, porém, não o visse aparecer, procurava amontoar fortuna.

       Via crescerem as fadigas e perseguições e pretendia manter boas relações com os poderosos inimigos de Jesus, antes de chegar o fim; pois via que Jesus não se tornaria rei, enquanto que a dignidade do Sumo Sacerdote e a importância dos seus confidentes lhe produziam viva impressão no espírito.
       Aproximava-se cada vez mais dos agentes fariseus, que o lisonjeavam incessantemente, dizendo-lhe, num tom de grande certeza, que dentro de pouco tempo dariam cabo de Jesus. Ainda recentemente tinham vindo procurá-lo diversas vezes em Betânia. O infeliz entregava-se cada vez mais a esses pensamentos criminosos e multiplicava nos últimos dias as diligências para que os príncipes dos sacerdotes se decidissem a agir.

       Estes ainda não queriam começar e tratavam-se com visível desprezo. Diziam que não havia tempo suficiente antes da festa e que qualquer tentativa causaria apenas desordem e tumulto durante a festa. Somente o sinédrio deu atenção ás propostas do traidor.
       Depois da recepção sacrílega do SS. SacramentoSatanás apoderou-se totalmente de Judas, que saiu decidido a praticar o crime. Primeiro procurou os negociadores, que sempre o tinham lisonjeado até ali e que receberam ainda com amizade fingida. Foi ter com outros, entre os quais Caifás e Anás; este último, porém, usou para com ele de um tom altivo e sarcástico. Estavam hesitantes, não contavam com o êxito, porque não tinham confiança em Judas.

       Vi o império infernal dividido: Satanás queria o crime dos Judeus, desejava a morte de Jesus, do santo Mestre que fizeram tantas conversões, do Justo a quem tanto odiava; mas sentia também não sei que medo interno da morte dessa inocente vítima, que não queria subtrair-se aos perseguidores; invejava-O por sofrer inocentemente. Vi-O assim excitar de um lado o ódio e furor dos inimigos de Jesus e de outro lado insinuar a alguns destes que Judas era um patife, um miserável, que não se podia fazer o julgamento antes da festa, nem reunir número suficiente de testemunhas contra Jesus.
       No sinédrio houve longa discussão sobre o que se devia fazer e, entre outras coisas, perguntaram a Judas: “Podemos prendê-Lo? Não terá homens armados consigo?” E o traidor respondeu: “Não, está só com os onze discípulos; está desanimado e os onze são homens medrosos”.

       Também lhes disse que era preciso apoderar-se de Jesus nessa ocasião ou nunca, que não podia esperar mais tempo para entregá-Lo, porque não voltaria esperar mais tempo para entregá-Lo, porque não voltaria para junto do Mestre, pois, alguns dias antes, os outros discípulos e Jesus mesmo haviam evidentemente suspeitado dele; pareciam pressentir-lhe os ardis e sem dúvida o matariam, se voltasse para o meio deles. Disse-lhes ainda que, se não O prendessem agora, escaparia, voltando com um exército de partidários, para fazer proclamar-se rei.

       Essas ameaças de Judas fizeram efeito. Deram-lhe ouvido ao conselho maldoso e ele recebeu o preço da traição, os trinta dinheiros. Essas moedas tinham a forma de uma língua, estavam furadas na parte arredondada e enfiadas, por meio de argolas, numa espécie de corrente; traziam certos cunhos.
       Judas, ofendido pelo contínuo desprezo e a desconfiança que lhe manifestavam, sentiu-se impelido pelo orgulho a restituir-lhes esse dinheiro ou oferecê-lo ao Templo, para que o tomassem por um homem justo e desinteressado.
Mas recusaram-no, porque era preço de sangue, que não se podia oferecer ao Templo.
       Judas viu quanto o desprezavam e sentiu-o profundamente. Não tinha esperado provar os frutos amargos da traição já antes de ter cometido; mas de tal modo que se havia comprometido com aqueles homens, que estava nas suas mãos e não podia mais se livrar deles. Observavam-no de muito perto e não o deixariam sair antes de ter explicado o caminho a seguir, para apoderar-se de Jesus.

      Três fariseus acompanhavam-no, quando desceu a uma sala, onde se achavam os guardas do Templo, que não eram todos judeus, mas gente de todas as nações. Quando tudo estava combinado e reunido o número de soldados necessários, Judas correu primeiro ao Cenáculo, acompanhado de um servo dos fariseus, para lhes dar notícia, se Jesus ainda estava ali, por causa da facilidade de prendê-lo lá, ocupando as portas; devia mandar avisar-lhe por um mensageiro.
       Um pouco antes de Judas receber o prêmio da traição, um dos fariseus saíra, para mandar sete escravos buscar madeira, para preparar a Cruz de Cristo, no caso que fosse condenado, porque no dia seguinte não teriam mais tempo, pois começava a festa da Páscoa.
       Andaram cerca de um quarto de hora, para chegar ao lugar onde queriam buscar o madeiro da cruz; estava ali ao longo de um muro alto e comprido, junto com muitas outras madeiras, destinadas a construções do Templo; carregaram-no para um lugar atrás do tribunal de Caifás, afim de prepará-lo. A árvore da cruz crescera antigamente perto da torrente Cedron, no valo, de Josafá; mais tarde caíra através do ribeiro e servia de ponte.

       Quando Neemias escondeu o fogo santo e os vasos sagrados na piscina Betesda, empregou também este tronco para cobri-los, junto com outra madeira; tirando-o depois de novo, jogaram-no para o lado, com outra madeira de construção.
       Em parte foi para zombar de Jesus, em parte aparentemente por acaso, mas em verdade unicamente por disposição da Divina Providência, que a Cruz foi construída de uma forma especial. Sem contar a tábua do título, a cruz foi feita de cinco diferentes espécies de madeiras. Tenho visto muitas coisas a respeito da cruz, diversos acontecimentos e significações, mas tenho esquecido tudo, fora o que acabo de contar.
       Judas, no entanto, voltou e disse que Jesus não estava mais no Cenáculo, mas havia de estar certamente no monte das Oliveiras, num lugar onde costumava rezar. Insistiu então que mandassem com eles somente uma pequena tropa, para que os discípulos, que espiavam por toda a parte, não suspeitassem e provocassem uma insurreição.

       Trezentos soldados deviam ocupar as portas e ruas de Ofel, bairro ao sul do Templo e o vale Milo, até a casa de Anás, no monte de Sião, para poder mandar reforço à tropa na volta, caso o pedisse; pois em Ophel todo o povo baixo aderia a Jesus.
       O indigno traidor disse-lhes ainda que tomassem muito cuidado, para Jesus não lhes escapar, mencionando que este já muitas vezes se tinha tornado invisível, por meio de artifícios misteriosos, fugindo assim aos companheiros na montanha. Fez-lhes também a proposta de amarrá-lo com uma corrente e servir-se de certas práticas mágicas, para que Jesus não rompesse as correntes. Os Judeus, porém, recusaram desdenhosamente esse conselho, dizendo: “Não nos podemos impor nada; uma vez que esteja em nossas mãos, está seguro”.
       Judas combinou com a tropa entrar ele primeiro no horto, para beijar e saudar Jesus, como se voltasse do negócio, como amigo e discípulo; depois deviam entrar os soldados, para prender o Mestre. Procederia como se os soldados tivessem chegado na mesma hora, só por acaso; fugiria depois, como os outros discípulos, fingindo não saber de nada.

       Talvez pensasse também que houvesse um tumulto, no qual os Apóstolos se defenderiam e Jesus fugiria, como fizera já diversas vezes. Assim pensava nos momentos de raiva, sentindo-se ofendido pelo desprezo e desconfiança dos inimigos de Jesus, mas não porque se arrependesse da negra ação ou por ter compaixão de Jesus; pois tinha-se entregue inteiramente a Satanás.
       Também não queria consentir que os soldados, entrando depois, trouxessem algemas e cordas, nem que o acompanhassem, homens de má reputação. Satisfizeram-lhe aparentemente os desejos, mas procederam como julgavam dever proceder com um traidor em quem não se pode fiar e que se joga fora, depois de ter feito o serviço.
       Foram dadas ordens expressas aos soldados de vigiar bem Judas e não o deixar afastar-se antes de ter prendido e amarrado Jesus; pois, como já tivesse recebido a remuneração, era de recear-se que o patife fugisse com o dinheiro e assim não poderiam prender Jesus de noite ou prenderiam outro em seu lugar, de modo que resultariam desta empresa apenas tumultos e desordens, no dia da Páscoa.

       A tropa escolhida para prender Jesus compunha-se de vinte soldados, alguns da guarda do Templo, os outros soldados de Anás e Caifás. Estavam vestidos quase da mesma forma que os soldados romanos; usavam capacetes e do gibão lhes pendiam correias em redor da cintura, como tinham também os soldados romanos.
       Distinguiam-se desses principalmente pela barba, pois os romanos em Jerusalém usavam só suíças, os lábios e queixo tinham imberbes. Todos os vinte soldados estavam armados de espadas, alguns tinham apenas lanças. Levavam consigo tochas e braseiras que, fixas sobre paus, serviam de lanternas; mas ao chegar, traziam acesa só uma das lanternas.
       Os judeus queriam mandar antes uma tropa mais numerosa com Judas, mas abandonaram esse plano, concordando com ele, objeção do traidor, de que do monte das Oliveiras se podia ver todo o vale e desse modo uma tropa maior não poderia deixar de ser vista. Ficou, portanto, a maior parte em Ophel; mandaram também sentinelas a vários atalhos e diversos lugares da cidade, para impedir tumultos ou tentativas de salvar Jesus.

       Judas marchou á frente dos vinte soldados; mandaram, porém, segui-lo a certa distancia quatro soldados de má reputação, gente ordinária, que levavam cordas e algemas. Alguns passos atrás desses, seguiam aqueles seis agentes, com os quais Judas travara relações há muito tempo. Havia entre eles um sacerdote de alta posição e confidente de Anás, outro de Caifás; além desses havia dois agentes fariseus e dois saduceus,que eram também herodianos. Todos, porém, eram espiões, hipócritas, aduladores interesseiros de Anás e Caifás e inimigos ocultos de Jesus, dos mais maliciosos.
       Os vinte soldados seguiram ao lado de Judas, até chegarem ao lugar onde o caminho passa entre Getsêmani e o horto das Oliveiras; aí não quiseram deixá-lo avançar sozinho e começaram a discutir com ele, num tom grosseiro e impertinente.

        
         A prisão do Senhor.


       Quando Jesus saiu do horto, no caminho entre Getsêmani e o horto das Oliveiras, apareceu na entrada desse caminho, à distância de vinte passos, Judas com os soldados, que ainda estavam discutindo. Pois Judas queria, separado dos soldados, aproximar-se de Jesus, como amigo; eles deviam entrar como por acaso, aparentemente sem Ele saber; mas os soldados seguraram-no, dizendo: “Assim não camarada, não nos fugirás antes de termos preso a Galileu”.
       Avistando depois os oito Apóstolos, que ao ouvir, o barulho se aproximaram, chamaram os quatro soldados para reforçar-se. Judas, porém, não consentiu que esses o acompanhassem e discutiu veementemente com eles. Quando Jesus e os três Apóstolos viram, à luz da lanterna, esse tropel ruidoso, com as armas nas mãos, Pedro quis atacá-los à força e disse: “Senhor, os oito de Getsêmani estão também ali adiante: Vamos atacar esses soldados”. Jesus, porém, mandou-o ficar quieto e retirou-se alguns passos para além do caminho, onde havia um lugar coberto de relva. Judas, vendo o seu plano transtornado, enraiveceu-se.

       Quatro dos discípulos saíram do horto Getsêmani, perguntando o que havia acontecido. Judas começou a conversar, querendo sair do embaraço por meio de mentiras, mas os soldados não o deixaram afastar-se. Aqueles quatro eram Tiago, o Menor, Filipe, Tomé e Natanael; este e um dos filhos do velho Simeão e alguns outros tinham vindo para junto dos oito Apóstolos, em Getsêmani, uns enviados pelos amigos de Jesus, para ter notícias dEle, outros impelidos pela inquietação e curiosidade. Além desses quatro, andavam também os outros discípulos pelas vizinhanças, espiando de longe e sempre prontos a fugir.
       Jesus, porém, aproximou-se alguns passos da tropa e disse em voz alta e clara: “A quem estais procurando?” Os chefes dos soldados responderam: “Jesus de Nazaré”. E Jesus disse: “Sou eu”. Apenas tinha dito estas palavras, caíram os soldados uns sobre os outros, como que atacados de convulsões.

       Judas, que estava perto, ficou ainda mais desconcertado no seu plano; e pareceu querer aproximar-se de Jesus, mas o Senhor levantou a mão, dizendo: “Amigo, para que vieste?”Judas disse, cheio de confusão, alguma coisa sobre negócio realizado. Jesus, porém, disse-lhe mais ou menos as seguintes palavras: “Oh! Melhor te fora não ter nascido”. Mas não me lembro mais das palavras exatas.
       No entretanto tinham-se levantado os soldados e aproximaram-se de Jesus e dos seus, esperando o sinal do traidor: que beijasse a Jesus. Pedro, porém, e os outros discípulos, cercaram Judas com ameaças, chamando-o de ladrão e traidor. O infeliz quis livrar-se deles por meio de mentiras, mas não conseguiu justificar-se, pois os soldados defenderam-no contra os discípulos, dando assim testemunho contra ele.

       Jesus, porém, disse mais uma vez: “A quem procurais?” Virando-se para Ele, responderam de novo: “Jesus de Nazaré”. Então disse?: “Sou Eu; já vos tenho dito que sou Eu; se, pois, procurais a Mim, deixai aqueles.” A palavra “Sou Eu”, caíram os soldados de novo com convulsões e contorções, como as têm os epiléticos e Judas foi de novo cercado pelos Apóstolos, que estavam extremamente furiosos contra ele. Jesus disse aos soldados: “Levantai-vos.”
       Levantaram-se assustados e como os Apóstolos ainda discutissem com Judas e também se dirigissem contra os soldados, estes atacaram os Apóstolos, livrando-lhes Judas das mãos e impelindo-o com ameaças a dar o sinal combinado, pois tinham ordem de prender só aquele a quem beijasse.

       Judas aproximou-se então de Jesus, abraçou e beijou-O, dizendo, “Deus te salve, Mestre.” E Jesus disse: “Judas é com um beijo que atraiçoas o Filho do Homem?”
       Então os soldados cercaram Jesus e os soldados, avançando, puseram mãos em Nosso Senhor. Judas quis fugir, mas os Apóstolos detiveram-no e atacaram os soldados, gritando: “Mestre, feriremos com as espadas?” Pedro, porém, mais excitado e zeloso, puxou da espada e golpeou Malcho, criado do Sumo Sacerdote, que o quis repelir e cortou-lhe um pedaço da orelha, de modo que Malcho caiu por terra, aumentando deste modo ainda a confusão.
       A situação nesse momento do veemente ataque de Pedro era a seguinte: Jesus preso pelos soldados, que O queriam amarrar; cercavam-nO, num largo circulo, os soldados, um dos quais, Malcho, foi prostrado por Pedro.

       Outros soldados estava ocupados em repelir os discípulos, que se aproximaram ou em perseguir outros que fugiram. Quatro dos discípulos andavam pelo lado do monte e só se avistavam de vez em quando, a grande distância. Os soldados estavam em parte um pouco desanimados pelas quedas, em parte não ousavam perseguir seriamente os discípulos, para não enfraquecerem demasiadamente a tropa que cercava Jesus.
       Judas, que quis fugir logo depois do beijo traidor, foi detido a certa distancia por alguns discípulos, que o cobriram de injúrias. Mas os seis agentes, que só então se aproximaram, livraram-no das mãos dos cristãos indignados. Os quatro soldados, em roda de Jesus, estavam ocupados com as cordas e algemas, seguravam-nO e iam amarrá-lO.
       Tal era a situação, quando Pedro golpeou Malcho e Jesus ao mesmo tempo disse: “Pedro! Embainha a tua espada, pois quem se serve da espada, perecerá pela espada. Ou pensas que eu não podia pedir a meu Pai que me mandasse mais de doze legiões de Anjos? Então não devo beber o cálice que meu Pai me apresentou? Como se cumpririam as Escrituras se assim não se fizesse?”

       Disse aos soldados: “Deixai-me curar este homem”. Aproximou-se de Malcho, tocou-lhe na orelha, rezando e ficou sã. Estavam, porém, em roda os esbirros, os soldados e os seis agentes, que O insultaram, dizendo aos soldados: “Ele tem contrato com o demônio; a orelha por feitiço parecia ferida e por feitiço sarou”.
       Então lhes disse Jesus: “Viestes a mim, armados de espadas e paus, a prender-me como um assassino. Todos os dias tenho ensinado no Templo, no meio de vós e não ousastes pôr a mão em mim; mas esta é a vossa hora, a hora das trevas”.
       Eles, porém, mandaram amarrá-lO e insultaram-nO, dizendo: “A nós não nos pudeste jogar por terra com teu feitiço”. Do mesmo modo falaram os soldados: “Acabaremos com as tuas práticas de feiticeiro, etc”. Jesus respondeu ainda algumas palavras, mas não sei mais o que foi; os discípulos, porém, fugiram para todos os lados.

       Os quatro soldados e os fariseus não tinham caído e portanto também não se tinham levantado, o que sucedeu, como me foi revelado, porque estavam inteiramente nas redes de Satanás, do mesmo modo que Judas, que também não caíra apesar de estar no meio dos soldados; todos os que caíram e se levantaram, converteram-se depois e tornaram-se cristãos.
       O cair e levantar era símbolo da conversão. Esses soldados não puseram a mão em Jesus, mas apenas O cercaram: Malcho converteu-se logo depois da cura, de modo que só por causa da disciplina continuou o serviço; já nas horas seguintes, durante a Paixão de Jesus, fazia o papel de mensageiro entre Maria e os outros amigos de Jesus, para dar notícias do que se passava.

       Os soldados amarraram Jesus com grande barbaridade e com a brutalidade de carrascos, por entre contínuos insultos e escárnios dos fariseus. Eram pagãos da classe mais baixa e vil; tinham o peito, os braços e joelhos nus; na cintura usavam uma faixa de pano e na parte superior do corpo, gibão sem mangas, ligado nos lados com correias. Eram de estatura baixa, mas fortes e muito ágeis, de cor parda-ruiva, como a dos escravos do Egito.

       Amarraram Jesus de uma maneira cruel, com as mãos sobre o peito, prendendo sem compaixão o pulso da mão direita por baixo do cotovelo do braço esquerdo e o pulso da mão esquerda por baixo do cotovelo do braço esquerdo e o pulso da mão esquerda por baixo do cotovelo do braço direito, com cordas novas e duras que lhe cortavam a carne. Passaram-lhe em redor do corpo um cinturão largo, no qual havia pontas de ferro e argolas de fibra ou vime, nas quais amarraram-Lhe uma espécie de colar, no qual havia pontas e outros corpos pontiagudos, para ferir; desse colar saiam, como uma estola, duas correias cruzadas sobre o peito até o cinturão, ao qual foram fortemente apertadas e ligadas. Fixaram ainda, em diversos pontos do cinturão, quatro cordas comprimidas, pelas quais podiam arrastar Jesus para lá e para cá, conforme lhe ditava a maldade. Todas essas cordas e correias eram novas e pareciam preparadas de propósito, desde que começaram a pensar em prender Jesus.

Fonte: Extraído do Livro "Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus - Anna Catharina Emmerich - Ed. MIR.
JESUS CONDUZIDO A ANÁS E CAIFÁS.


1. Maus tratos que sofreu a caminho da cidade

           
Depois de acesas algumas lanternas, o cortejo se pôs em marcha. A frente marchavam dez soldados; depois seguiam os esbirros, arrastando Jesus pelas cordas, atrás vinham, insultando-O e escarnecendo-O, os fariseus e no fim os restantes 10 soldados, que formavam a retaguarda. Os discípulos andavam ainda pelas vizinhanças, como fora de si; João, porém, seguia a pouca distância os últimos soldados e os fariseus mandaram prendê-lo. Voltaram por isso alguns soldados, correndo, para segurá-lo, mas ele pôs-se a fugir e, como o segurassem pelo sudário que tinha em volta do pescoço, abandonou-o nas mãos dos soldados e escapou. Já tinha despido o manto antes, vestindo só uma túnica arregaçada e sem mangas, para poder fugir mais ligeiramente. O pescoço, cabeça e braços tinha-os envolvido numa faixa estreita de pano, como os Judeus costumam usar.

         Os soldados arrastavam e maltratavam Jesus da maneira mais cruel e praticavam muitas maldades, só para agradar e adular desse modo baixo aos seis agentes farisaicos, que eram cheios de ódio e maldade contra Jesus. Conduziram-No pelo caminho incômodo, por todos os sulcos, sobre as pedras e pela lama. Puxavam as cordas compridas com força, escolhendo para si o melhor caminho; assim Jesus tinha de seguir onde as cordas o arrastavam. Tinham nas mãos pedaços de cordas nodosas, com que batiam e impeliam Nosso Senhor para frente, como costumam entre escárnios e insultos tão grosseiros, que seria contra a decência repetir-lhes as palavras.

         Jesus ia descalço; além da roupa do corpo, vestia uma túnica de lã, tecida sem costura e um manto. Os discípulos, como os judeus em geral usavam no corpo, sobre as costas e o peito, um escapulário, constando de duas peças de pano, unidas sobre os ombros por correias, deixando deste modo descobertos os lados; cingiam-se com um cinto, do qual pendiam quatro faixas de pano, as quais, enrolando as coxas, formavam uma espécie de calça. Devo acrescentar ainda que não vi os soldados apresentarem uma ordem escrita ou documento de prisão; procederam como se Jesus estivesse fora da lei e sem direitos.

         O cortejo marchou a passo rápido e tendo saído do caminho que passa entre o horto de Getsêmani e o das Oliveiras, caminhou algum tempo ao longo do lado oriental de Getsêmani, dirigindo-se a uma ponte que ali atravessa a torrente Cedron. Jesus, indo com os Apóstolos ao monte das Oliveiras, não passara por esta ponte, mas atravessara o Cedron por outra ponte, mais para o sul, tomando um atalho pelo vale de Josafá. A ponte sobre a qual foi conduzido pelos soldados, era muito comprida, porque não estendia somente sobre o leito do Cedron, que ali passa perto do monte, mas também a alguma distância, sobre os terrenos desiguais do vale, formando uma estrada calçada, transitável.

         Antes do cortejo chegar à ponte, vi Jesus cair duas vezes por terra, pelos arrancos cruéis que os soldados davam nas cordas. Chegando, porém, no meio da ponte, praticaram ainda maior crueldade. Empurraram o pobre Jesus amarrado, a quem seguravam pelas cordas, da ponte, que ali tinha a altura de um homem, ao leito do Cedron e insultaram-nO ainda, dizendo que aí bebesse à vontade. Foi só por proteção divina que o Redentor não se feriu mortalmente. Caiu sobre os joelhos e depois sobre o rosto, que se teria machucado gravemente no leito, que tinha pouca água, se Ele não o tivesse protegido, estendendo as mãos ligadas. Essas não estavam mais amarradas no cinto; não sei se foi por assistência divina ou se os soldados mesmos lhas desamarraram.

As marcas dos joelhos, pés, cotovelos e dedos do Salvador imprimiram-se, pela vontade de Deus, no lugar em que tocaram, no fundo rochoso; mais tarde eram veneradas pelos cristãos. Hoje não se crê mais em tais efeitos; mas vi muitas vezes, em visões históricas, tais impressões feitas em rochas pelos pés, joelhos e mãos de patriarcas e profetas, de Jesus, da SS. Virgem e de outros santos. As rochas eram menos duras e mais crentes do que os corações dos homens e deram, em tais momentos, testemunho da impressão que a verdade sobre elas fez.

         Eu não tinha visto Jesus beber durante as graves angústias no monte das Oliveiras, apesar da veemente sede; depois, porém, quando o empurraram no Cedron, eu O vi beber penosamente e recitar a passagem profética do salmo que fala em “beber do ribeiro ao lado do caminho”. (Sal. 109,7).

         Os soldados que ficaram na ponte, seguravam Jesus sempre pelas cordas e porque lhes era demasiadamente dificultoso puxá-Lo para cima e como a muralha na outra banda impedia que Jesus atravessasse o ribeiro, voltaram para trás, para o começo da ponte, arrastando Jesus através do Cedron; ali desceram à margem e puxaram-nO de costas, pela ribanceira acima. Esses miseráveis empurraram então ao pobre Jesus pela segunda vez, sobre a longa ponte, arrastando e arrancando-O para frente, cobrindo-O de insultos e maldições, empurrões e pancadas. A longa túnica de lã, ensopada de água, caia-Lhe pesada sobre os ombros; movia-se com dificuldade e no outro lado da ponte caiu de novo por terra. Levantaram-nO aos arrancos, batendo-Lhe com as cordas nodosas, arregaçaram-Lhe no cinto o vestido molhado, entre vis escárnios e insultos; falaram, por exemplo, de arregaçar a veste, para matar o cordeiro pascal e zombarias semelhantes.

         Ainda não era meia noite, quando vi Jesus caminhar, empurrado desumanamente pelos soldados, entre pragas e pancadas, sobre o pedregulho cortante e pedaços de rochas, através de cardos e espinheiros. O caminho passava para o outro lado do Cedron; era estreito e já muito estragado e havia atalhos paralelos a ele, ora mais acima, ora mais abaixo. Os seis malvados fariseus ficavam onde o caminho o permitia, sempre perto de Jesus; cada um tinha na mão um instrumento de tortura, uma vara curta, com ponta aguda, com a qual Lhe batiam ou, empurrando-O, picavam.

Nos lugares por onde Jesus andava, com os pés descalços e sangrentos, sobre as pedras cortantes, por urtigas e espinheiros, arrastado pelos soldados, que andavam nas veredas mais cômodas do lado, o coração terno do pobre Jesus ainda era ferido pelo malicioso escárnio dos seis fariseus, que diziam, por exemplo: “Aqui o teu precursor, João Batista, não te preparou um bom caminho”. ou: “Aqui não se cumpre a palavra do profeta Malaquias: “Eis aí mando o meu Anjo e ele preparará o caminho diante de ti”; ou: “Porque não ressuscita Ele a João Batista, para preparar-Lhe o caminho?” Tais palavras escarnecedoras daqueles miseráveis, acompanhadas de risadas impertinentes dos outros, instigavam também os soldados a afligirem Jesus com novas crueldades.

         Tendo arrastado o Senhor por algum tempo, notaram que diversos homens se avistavam ao longe, segundo o cortejo, pois, à notícia da prisão de Jesus, vieram muitos discípulos de Betfagé e de outros esconderijos, para ver o que sucedia ao Mestre. À vista disso, começaram os inimigos de Jesus a recear que aqueles homens pudessem agredí-los e libertar o preso; fizeram por isso sinais na direção do arrabalde de Ofel, gritando que lhes mandassem reforço, como antes tinham combinado.

         O cortejo tinha ainda um caminho de alguns minutos até a porta que, mais ao sul do Templo, conduzia, através de um arrabalde pequeno, ao monte Sião, onde moravam Anás e Caifás, quando vi sair dessa porta um pelotão de 50 soldados, para reforçar a guarda de Jesus. Marcharam em três grupos: o primeiro de dez, o último de quinze homens; esses contei, o do meio tinha, portanto, 25.

Traziam diversas lanternas e avançavam muito barulhentos e impertinentes, dando gritos altos, como para anunciar a sua vinda aos soldados do cortejo e dar-lhes os parabéns pela vitória. Aproximaram-se com grande vozeria. No momento em que o primeiro grupo se juntou ao cortejo de Jesus, vi Malco e alguns outros da retaguarda aproveitarem a desordem, para se afastarem furtivamente, dirigindo-se de novo ao monte das Oliveiras.

         Quando esse destacamento saiu ao encontro do outro cortejo, à luz das lanternas e com grande gritaria, dispersaram-se os discípulos que tinham aparecido nos arredores. Vi, porém, a SS. Virgem e nove mulheres, impelidas pelo medo, virem de novo ao vale de Josafá. Estavam com ela, Marta, Madalena, Maria, filha de Cleofas, Maria Salomé, Maria Marcos, Suzana, Joana Chusa, Verônica e Salomé.

Estavam ao sul de Gestsêmani, defronte daquela parte do monte das Oliveiras, onde há outra gruta, na qual Jesus, em outras ocasiões, costumava rezar. Vi com elas também Lázaro, João Marcos, como também o filho de Verônica e de Simeão. Esse estivera também com os oito Apóstolos em Getsêmani e passara no meio dos soldados em tumulto. Trouxeram a notícia às santas mulheres. Nesse momento ouviram a gritaria e avistaram as lanternas das duas tropas, que se encontraram. A SS. Virgem perdeu então os sentidos, caindo nos braços das companheiras, que se retiraram com ela a certa distância, para, depois de passado o cortejo, levá-la à casa de Maria Marcos.


2. Lamentações dos habitantes de Ofel


            Os cinqüenta soldados faziam parte de uma tropa de 300 homens, que haviam ocupado de improviso as portas e ruas de Ofel e arredores; pois Judas, o traidor, prevenira o Sumo Sacerdote que os habitantes de Ofel, na maior parte pobres operários, jornaleiros, carregadores de água e lenha, a serviço do Templo, eram os partidários mais convictos de Jesus e que era para recear que fizessem tentativas de livrá-Lo, ao ser conduzido por lá.

O traidor bem sabia que Jesus tinha ali muitas vezes ensinado, consolado, socorrido e curado muitos dos pobres obreiros. Foi também ali que Jesus se demorou, por ocasião da viagem de Betânia a Hebron, depois da morte de S. João Batista, para consolar os amigos deste; nessa estadia em Ofel, Jesus curava muitos operários e jornaleiros, feridos no desabamento do aqueduto e da grande torre de Silo. A maior parte dessa pobre gente reuniu-se, depois da vinda do Espírito Santo, à primeira comunidade cristã; quando depois os cristãos se separaram dos judeus e fundaram várias colônias da comunidade, erigiram-se tendas e cabanas dali por todo o vale, até o monte das Oliveiras. Naquele tempo era também ali o campo de ação de Estevão. Ofel é uma colina cercada de muralhas, situada ao sul do Templo e habitada na maior parte por jornaleiros pobres; parece-me que não é muito menor do que Dülmen.

         Os habitantes de Ofel foram acordados do sono pelo barulho da tropa, que ocupou o bairro. Saíram das casas a correr, apinharam-se nas ruas e diante da porta onde estavam os soldados e perguntaram o que sucedia; mas foram repelidos para suas casas com zombarias e rudes insultos pelos soldados, que eram na maior parte escravos de índole baixa e impertinente. Quando, porém, tiveram a informação dada por alguns soldados: “trazem preso o falso profeta, Jesus, o malfeitor; o Sumo Sacerdote quer acabar-Lhe com as práticas; provavelmente morrerá na cruz”, levantou-se alto pranto e lamentação em toda a vila, acordada do sono noturno.

Essa pobre gente, homens e mulheres, correram pelas ruas, chorando ou caindo de joelhos, com os braços estendidos, clamando ao céu ou lembrando em alta voz os benefícios que Jesus lhes havia feito. Mas os soldados fizeram-nos voltar para as casas, empurrando-os e batendo-lhes; insultaram também a Jesus, dizendo: “Eis aqui uma prova evidente de que é um agitador do povo”. Não conseguiram, porém, sossegar inteiramente o povo, temendo também que, com maiores violências, ficasse ainda mais excitado; contentaram-se, pois, em retê-lo fora da rua pela qual Jesus devia ser conduzido.

         Entretanto aproximava-se cada vez mais da porta de Ofel o cortejo desumano, que trazia Jesus preso. Nosso Senhor já caíra diversas vezes e parecia não poder sustentar-se mais em pé. Um soldado compadecido aproveitou essa ocasião e disse: “Vós mesmos vedes que Ele não pode mais andar: Se O quiserdes levar vivo à presença do Sumo Pontífice, soltai-Lhe um pouco as cordas que Lhe prendem as mãos, para que, caindo, possa apoiar-se. Enquanto o cortejo parava e os soldados Lhe desligavam um pouco as mãos, outro soldado misericordioso trouxe-Lhe água para beber, de um poço que se achava na vizinhança. Haurira a água com um saquinho de cortiça, que os soldados e viajantes nesse país costumam usar para beber. Jesus disse-Lhe algumas palavras de agradecimento, citando um trecho de um profeta, sobre “beber água viva” ou “fontes de água viva”, não sei mais exatamente; os fariseus zombaram e insultaram-nO por isso.

         Acusaram-nO de vangloriar-se e de blasfemar, disseram-Lhe que deixasse tais palavras vaidosas; que não daria mais a beber nem a um animal, muito menos a um homem. Foi-me, porém, revelado que aqueles dois homens: um que fez desligar as mãos de Jesus e o outro que lhe deu a beber, tiveram a graça de uma iluminação interna. Converteram-se já antes da morte de Jesus e uniram-se, como discípulos, à comunidade cristã. Eu lhes sabia os nomes e também os nomes que receberam como discípulos e todas as circunstâncias da sua conversão; mas é impossível guardar tudo na memória: é uma imensidade de coisas.

         O cortejo continuou então o caminho, maltratando o Senhor; subindo por uma encosta, entrou pela porta de Ofel, onde foi recebido pelos lamentos pungentes dos habitantes, que tinham por Jesus grande afeto e gratidão. Só à força podiam os soldados reter a multidão de homens e mulheres, que se acercaram de todos os lados. Vinham correndo, prostravam-se de joelhos, estendendo os braços e exclamando, “Soltai este homem, soltai este homem. Quem nos há de socorrer, quem nos há de curar e consolar? Entregai-nos este homem.

Era um espetáculo que dilacerava o coração: Jesus, pálido, desfigurado, ferido, o cabelo em desordem, o vestido molhado, sujo, mal arregaçado, puxado pelas cordas, empurrado a pauladas, impelido pelos soldados impertinentes, meio nus, como se conduz um animal meio morto ao sacrifício; vê-lo arrastado pela soldadesca arrogante, através da multidão dos habitantes de Ofel, cheios de gratidão e compaixão, que Lhe estendiam os braços, que curara de paralisia, que o aclamavam com as línguas a que restituíra a voz, que olhavam e choravam com os olhos a que dera a vista.

         Já no vale do Cedron se juntara à tropa muita gente de classe baixa, agitada pelos soldados e provocada pelos agentes de Anás e Caifás e outros inimigos de Jesus; insultavam e injuriavam a Jesus e ajudavam também a ultrajar e afrontar o bom povo de Ofel. Este lugar está situado numa colina; vi o ponto mais alto, no meio da vila, um largo onde estava empilhada muita madeira de construção, como no pátio de uma carpintaria. Descendo dali, o cortejo dirigiu-se a uma porta do muro, pela qual saiu do arrabalde.

         Depois do cortejo ter saído de Ofel, os soldados impediram o povo de seguí-lo. O cortejo desceu ainda um pouco no vale, deixando à direita um edifício vasto, restos, se me lembro bem, de obras de Salomão e à esquerda, o tanque de Betesda. Assim marcharam, descendo sempre o caminho do vale chamado Milo, depois se dirigiram um pouco para o sul, subindo as altas escadarias do monte Sião, para a casa de Anás. Em todo esse caminho continuavam a insultar e maltratar Jesus e o povo baixo que vindo da cidade se juntara ao cortejo, instigava os infames soldados a repetirem as crueldades. Do monte das Oliveiras até a casa de Anás caiu Jesus sete vezes.

         Os habitantes de Ofel ainda estavam cheios de susto e tristeza, quando outro incidente lhes renovou a compaixão: a Mãe de Jesus, conduzida pelas santas mulheres e pelos amigos de Jesus, vindo do vale de Cedron, passou por Ofel, indo à casa de Maria Marcos, situada ao pé do monte Sião. Quando a boa gente de Ofel a reconheceu, começou de novo a chorar compadecida; apinhava-se de tal modo em roda de Maria e dos companheiros, que a Mãe de Jesus foi quase transportada pela multidão.

         Maria, muda de dor, não falava, nem depois de chegar à casa de Maria Marcos, senão quando chegou mais tarde João; então começou a perguntar com grande tristeza e João contou-lhe tudo o que vira, desde a saída do Cenáculo, até aquela hora. Mais tarde levaram a SS. Virgem à casa de Marta, a leste da cidade, ao pé do palácio de Lázaro. Conduziram-na novamente por desvios, evitando os caminhos pelos quais Jesus fora conduzido, para não lhe aumentar demais a tristeza e dor.

         Pedro e João que, a certa distância, tinham seguido o cortejo, quando este entrou na cidade, recorreram depressa a alguns conhecidos que João tinha entre os empregados do Sumo Pontífice, para acharem uma oportunidade de entrar na sala do tribunal, para onde o Mestre devia ser levado. Esses conhecidos de João eram uma espécie de mensageiros do tribunal, que naquela hora receberam ordem de percorrer a cidade, para acordar os anciãos de várias classes e mais outras pessoas e convocá-los para a sessão do tribunal.

Desejavam mostrar-se obsequiosos aos dois Apóstolos, mas não acharam outro meio senão o de fazer João e Pedro vestirem-se dos mantos, entrarem depois no tribunal de Caifás; pois ali estava reunido somente gente de classe baixa, todos subornados, soldados e falsas testemunhas; todos os outros eram expulsos. Como, porém, José de Arimatéia e Nicodemos e outras pessoas bem intencionadas também fossem membros do Sinédrio, aos quais os fariseus talvez deixassem de avisar de propósito, foram Pedro e João convidar todos esses amigos de Jesus.
Judas, no entanto, como um criminoso desvairado, que a seu lado vê o demônio, andava vagando pelas encostas íngremes ao sul de Jerusalém, para onde se jogavam o lixo e todas as imundícies.
        

3. Preparativos dos inimigos de Jesus.


         Anás e Caifás tinham imediatamente recebido notícia da prisão de Jesus. Em suas casas estava tudo em pleno movimento. As salas dos tribunais estavam iluminadas e todas as respectivas entradas e passagens guardadas; os mensageiros percorriam a cidade, para convocar os membros do Conselho, os escribas e todos quantos tinham voto no tribunal. Muitos, porém, já estavam reunidos com Caifás, desde a hora da traição de Judas, para esperar o resultado.

Foram também chamados os anciãos das três classes de cidadãos. Como os fariseus, saduceus e herodinos de todas as partes do país, tinham chegado para a festa a Jerusalém, já havia alguns dias e tendo sido combinado havia muito tempo, entre eles e o Sinédrio, a prisão de Jesus, foram chamados também entre eles os mais ferozes inimigos do Salvador (Caifás tinha uma lista com os nomes de todos); receberam a ordem de juntar, cada um no seu meio, todas as provas e testemunhas contra o Senhor e de trazê-las ao tribunal.

Estavam, porém, reunidos em Jerusalém todos os fariseus e saduceus e outra gente malvada de Nazaré, Cafarnaum, Tirza, Gabara, Jotapata, Silo e outros de lugares, aos quais Jesus tinha dito tantas vezes a verdade crua, cobrindo-os de vergonha e confusão, diante de todo o povo; estavam todos cheios de ódio e raiva e cada um foi então procurar alguns patifes, entre os peregrinos conterrâneos, que moravam em acampamentos separados, conforme as várias regiões; subornaram-nos com dinheiro, para agitarem contra Jesus e O acusarem.
Mas, fora algumas evidentes mentiras e calunias, não sabiam proferir senão aquelas acusações, a respeito das quais Jesus os reduzira enumeráveis vezes ao silêncio nas sinagogas.

         Todos esses homens reuniram-se pouco a pouco no tribunal de Caifás e mais toda a multidão de inimigos de Jesus, entre os orgulhosos fariseus e escribas e toda e escórcia mentirosa de seus partidários em Jerusalém. Havia já alguns dos mercadores, furiosos porque Jesus os expulsara do Templo, muitos doutores vaidosos que Ele fizera emudecer no Templo, diante do povo e talvez ainda houvesse alguns que não Lhe podiam perdoar tê-los convencidos de erros quando, menino de doze anos, ensinara pela primeira vez no Templo.

Entre os inimigos de Jesus ali reunidos havia pecadores impenitentes, que Ele não quisera curar da doença, pecadores reincidentes, que depois da cura, de novo adoeceram; jovens vaidosos, que o Mestre não aceitara como discípulos; caçadores de heranças, furiosos por Ele ter dividido entre os pobres tantos bens que esperavam possuir; criminosos, cujos camaradas convertera; libertinos e adúlteros, cujas amantes reconduzira ao caminho da virtude; homens que já se rejubilavam de herdar riquezas, cujos proprietários foram por Ele curados da doença; e muitos vis aduladores, capazes de toda a maldade, muitos instrumentos de Satanás, cujos corações odiavam tudo quanto era santo e, portanto, mais ainda, o santo dos santos.

Essa escória de uma grande parte do povo judaico, reunida para a festa, foi posta em movimento, excitada pelos inimigos principais de Jesus e afluía de todos os lados ao palácio de Caifás, para acusar falsamente de todos os crimes ao verdadeiro Cordeiro pascal de Deus, que tomara sobre si os pecados do mundo; vinham manchá-Lo com os efeitos dos pecados que tomara sobre si, suportando e expiando-os.

         Enquanto esse lodo do povo judaico se agitava, para enlamear o Salvador Imaculado, aproximavam-se também muitas pessoas piedosas e amigos de Jesus, acordados pelo tumulto e entristecidos pela terrível notícia; não estavam iniciados nas intenções secretas dos inimigos, e quando ouviam e choravam, eram enxotados, quando se calavam, olhavam-nos de canto.
Outros, mais fracos, em intencionados e outros meio convencidos, se escandalizavam ou caiam em tentações, duvidando de Jesus. O número dos que ficaram firmes na fé, não era grande; aconteceu como ainda acontece hoje, que muitos querem ser bons cristãos, enquanto lhes convém, mas que se envergonham da cruz onde ela não é bem vista. Já no principio, porém, muitos se retiraram abatidos e calados; pois estavam enjoados do processo injusto, da acusação infundada, dos insultos e ultrajes vis e revoltantes e também comovidos pela paciência resignada do Salvador.
        

4. Uma vista geral sobre a Situação em Jerusalém àquela hora

           
Terminadas as numerosas cerimônias e orações, tanto públicas como particulares, acabados os preparativos para a festa, a vasta cidade populosa e os extensos acampamentos dos peregrinos pascais, nos arredores, estavam mergulhados em profundo sono e descanso, quando veio a notícia da prisão de Jesus, excitando tanto inimigos como amigos do Senhor.

De todos os pontos da cidade se põem em movimentos os convocados pelos mensageiros do Sumo Sacerdote. Correm, aqui ao claro luar, acolá à luz de lanternas, pelas ruas de Jerusalém, as quais de noite, pela maior parte, estão escuras e desertas; pois em geral se passa a vida das famílias nos pátios interiores, para onde também dão as janelas. Todos aqueles homens caminham para Sião, de cuja eminência brilha a luz das lanternas e ressoa grande vozeria. Ouve-se ainda, cá e lá, bater às portas dos vestíbulos para acordar os dormentes.

Em muitas partes da cidade há tumulto, barulho e gritaria; abrem-se as portas aos que batem, pergunta-se que há e obedece-se à ordem de ir a Sião. Curiosos e criados seguem, para trazer depois notícias dos acontecimentos aos que ficam em casa. Ouve-se o fechar de portas e o puxar barulhento de ferrolhos e trancas. O povo é medroso e receia uma agitação. Cá e lá saem pessoas das casas, pedindo informações a conhecidos que passam ou esses entram apressadamente em casa de amigos; ou vem-se aí muitas conversas maliciosas, como em semelhantes ocasiões, também hoje em dia, são bastante comuns, dizem, por exemplo: “Agora Lázaro e a irmã vão ver com quem travaram amizade. Joana Chusa, Suzana, Maria, mãe de João Marcos e Salomé arrepender-se-ão do procedimento que tiveram. Como deve agora Seráfia se humilhar diante do marido, Sirah, que tantas vezes a tem censurado por causa das relações com o Galileu! Todo o bando dos partidários deste agitador fanático olhava com compaixão para os que não os acompanhavam, mas agora muitos não saberão onde se esconder.

Agora não se apresenta ninguém que lhe estenda mantos e véus ou ramos de palmeira sob os pés do jumento. Esses hipócritas, que sempre querem ser melhores do que os outros, bem merecem cair agora na suspeita, pois todos estão implicados na causa do Galileu. Isto tem raízes mais longas do que se pensa. Eu queria saber como Nicodemos e José de Arimatéia se hão de haver; há muito que se desconfia deles, dão-se muito com Lázaro, mas são uns espertos. Agora há de esclarecer-se tudo, etc”. Desse modo se ouve falar muita gente, que tem ódio contra certas famílias, especialmente contra aquelas mulheres que creram em Jesus e desde então lhe manifestaram publicamente a fé.

         Em outras partes o povo recebe as notícias de maneira mais digna; alguns se assustam e outros choram sozinhos ou procuram ocultamente um amigo que pense como eles, para desafogar o coração. Poucos, porém, se atrevem a manifestar compaixão franca e resolutamente.

         Não é, porém, em toda a cidade que reina a excitação, mas apenas onde os mensageiros levam a chamada para o tribunal, onde os fariseus procuram as falsas testemunhas e especialmente no entroncamento das ruas que conduzem a Sião. É como se em diferentes partes de Jerusalém se alumiassem faíscas de fúria e raiva que, correndo pelas ruas, se tinissem a outras que encontrassem e, cada vez mais forte e densas, se derramassem finalmente, como um rio lúgubre de fogo, no tribunal de Caifás sobre Sião. Em algumas partes da cidade reina ainda silêncio, mas também ali já começa a pouco o alarme.

         Os soldados romanos não tomam parte; mas os guardas estão reforçados e as tropas reunidas; observam atentamente o que acontece. Nos dias da Páscoa estão sempre muito quietos, por causa do grande concurso do povo, mas ao mesmo tempo sempre prontos e de sobreaviso. O povo que percorre as ruas, evita os pontos onde estão os guardas; pois contraria muito aos judeus farisaicos ter de responder ao grito da sentinela. Os Sumos Sacerdotes certamente informaram antes a Pilatos o motivo porque ocuparam Ofel e uma parte de Sião com os seus soldados; mas eles desconfiam uns dos outros. Pilatos também não dorme; recebe informações e dá ordens. A esposa está deitada no leito, dormindo profundamente, mas está inquieta, geme e chora, como opressa por pesadelos; dorme, mas aprende muitas coisas, mais do que Pilatos.

         Em nenhuma parte da cidade se manifesta tanta compaixão como em Ofel, entre os pobres escravos do Templo e os jornaleiros que habitam essa colina. A dolorosa nova surpreendeu-os tão repentinamente, no meio da noite silenciosa; a crueldade despertou-o do sono: aí passara o santo Mestre, o benfeitor que os curara e consolara, passara como uma horrível visão noturna, ferido e maltratado; depois se lhes concentrou novamente a compaixão na Mãe dolorosa de Jesus, passando pelo meio deles, com as companheiras.

Ai! Que espetáculo triste, a Mãe dilacerada pela dor e as amigas de Jesus, obrigadas a percorrer as ruas, inquietas e tímidas, à hora insólita da meia noite, refugiando-se de uma casa amiga à outra! Diversas vezes se vêm obrigadas a esconder-se num canto das casas, para deixar passar um grupo de impertinentes; outras vezes são insultadas como mulheres notívagas; freqüentemente ouvem ditos maliciosos dos transeuntes, raras vezes uma palavra de compaixão para com Jesus. Chegadas afinal ao abrigo, caem abatidas por terra, chorando e torcendo as mãos, todas igualmente desconsoladas e sem forças; sustentam ou abraçam umas as outras, ou sentam-se, em dor silenciosa, apoiando sobre os joelhos a cabeça velada.

Batem à porta, todas escutam em silêncio e medo; batem devagar e timidamente: não é um inimigo; abrem com receio: é um amigo ou um criado de um amigo de seu Senhor e Mestre; rodeiam-no, pedindo notícias e ouvem falar de novos sofrimentos; a compaixão não as deixa ficar em casa, saem de nova à rua, para se informar, mas voltam sempre com crescente tristeza.

         A maior parte dos apóstolos e discípulos andam vagando medrosos pelos vales em redor de Jerusalém e escondem-se nas cavernas do monte das Oliveiras. Cada um se assusta à aproximação do outro; pedem notícias em voz baixa e cada ruído de passos lhes interrompem as tímidas conversas. Mudam freqüentemente de paradeiro e separadamente se aproximam de novo da cidade. Outros procuram, furtivamente, conhecidos entre os conterrâneos peregrinos, nos acampamentos, para pedir informações ou mandam-nos à cidade, para trazerem notícias. Outros sobem ao monte das Oliveiras, espiando inquietos o movimento das lanternas e escutando o barulho de Sião, interpretam tudo de mil diferentes modos e descem de novo ao vale, para ter qualquer informação certa.

         O silêncio da noite é cada vez mais interrompido pelo barulho em torno do tribunal de Caifás. Essa região é iluminada pela luz das lanternas e dos archotes. Nos arredores da cidade ressoa o mugido dos numerosos animais de carga ou de sacrifício, que tantos peregrinos de fora trouxeram para os acampamentos; como ressoa inocente e comovedor o balir desamparado e humilde dos inumeráveis cordeiros, que amanhã hão de ser imolados no Templo! Mas um só é imolado, porque Ele mesmo quis e não abre a boca, como a ovelha que é conduzida ao matadouro; e como um cordeiro, que emudece diante de quem o tosa, assim se cala o Cordeiro pascal, puro e sem mancha, - Jesus Cristo.
        
Sobre todo esse quadro se estende um céu sinistro e singularmente impressionante: a lua caminha ameaçadora, escurecida por estranhas manchas; dir-se-ia estar alterada e horrorizada, como se tivesse medo de tornar-se cheia, pois nessa ocasião Jesus já estará morto. Fora da cidade porém, no íngreme vale de Hinon, anda vagando Judas Iscariotes, o traidor, - incitado pelo demônio, chicoteado pela consciência, fugindo da própria sombra, solitário, sem companheiro, em lugares malditos e sem caminhos, em pântanos lúgubres, cheios de lixo e imundícies; milhares de espíritos maus andam por toda a parte, desnorteando os homens e impelindo-os ao pecado.

O inferno está solto e incita todos ao pecado: o fardo pesado do Cordeiro aumenta. A raiva de Satanás multiplica-se, semeando desordem e confusão. O Cordeiro tem sobre si todo o fardo; Satanás, porém, quer o pecado e pois que não cai em pecado esse justo, a quem em vão tentou seduzir, quer pelo menos que os inimigos que O perseguem, pereçam no pecado.

         Os Anjos, porém, vacilam entre tristeza e alegria; desejariam suplicar diante do trono de Deus a permissão de socorrer a Jesus, mas só podem admirar e adorar o milagre da justiça e misericórdia divina, que já existia, desde a eternidade, no Santíssimo do céu e começa a realizar-se agora no tempo, pois também os Anjos crêem em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do Céu e da terra e em Jesus Cristo, um só seu Filho, Nosso Senhor, o qual foi concebido do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem, que esta noite começará a padecer, sob o poder de Pôncio Pilatos, que amanhã será crucificado, morto e sepultado; que descerá aos infernos, ressurgirá dos mortos ao terceiro dia, que subirá ao céu, onde se sentará à mão direita de Deus Pai Todo-Poderoso e de onde há de vir e julgar os vivos e os mortos pois também eles crêem no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na Comunhão dos Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna. Amém.

         Tudo isto é apenas uma pequena parte das impressões que necessariamente enchiam um pobre coração pecador de dilacerante angustia, contrição, consolação e compaixão quando, em busca de alívio, se lhe desviava o olhar da cruel prisão do Salvador e se dirigia sobre Jerusalém, nessa hora da meia noite, a mais solene de todos os tempos, na qual a infinita justiça e a misericórdia infinita de Deus, encontrando-se, abraçando-se penetrando-se uma a outra, iniciaram a santíssima obra do amor de Deus e dos homens: castigar e expiar os pecados dos homens no Homem-Deus pelo Homem-Deus.
         Tal era a situação geral, quando o nosso querido Salvador foi conduzido à casa de Anás.
        

5. Jesus diante de Anás


         Cerca de meia noite chegou Jesus ao palácio de Anás e foi conduzido, pelo átrio iluminado, á grande sala que tinha o tamanho de uma pequena Igreja. No fundo, em frente à entrada, estava sentado Anás, rodeado de 28 conselheiros, num terraço, sob o qual podia passar, pelo lado. Em frente havia uma escada, interrompida por patamares, que conduzia a esse tribunal de Anás, no qual se entrava por uma porta própria, do fundo do edifício.
         Jesus, cercado ainda por uma parte dos soldados que o prenderam, foi puxado pelos soldados alguns degraus da escada para cima e seguro pelas cordas. A outra parte da sala foi ocupada por soldados e gentalha, judeus que insultam Jesus, criados de Anás, e parte das testemunhas reunidas por este que depois se apresentaram em casa de Caifás.

         Anás estava esperando impacientemente a chegada de Jesus: tudo nele revelava ódio, malícia e crueldade. Era então presidente de um certo tribunal e reunira ali a junta da comissão, que tinha a tarefa de velar pela pureza da doutrina e de exercer o ofício de procurador geral no tribunal do Sumo Sacerdote.

         Jesus estava em pé diante de Anás, calado, de cabeça baixa, pálido, cansado, com as vestes molhadas e enlameadas, as mãos amarradas, seguro com cordas pelos soldados. Anás, velho malvado, magro, com pouca barba, cheio de impertinência e de orgulho farisaico, sorria hipocritamente, como se não soubesse de nada e se admirasse de ser Jesus o preso que lhe haviam anunciado.

O discurso enfadonho com que recebeu Jesus, não sei repetí-lo com as mesmas palavras, mas era mais ou menos o seguinte: “Olá! Jesus de Nazaré! És tu? Onde estão então os teus discípulos, os teus numerosos aderentes? Onde está o teu reino? Parece que tudo saiu muito diferente do que pensavas! Acabaram agora as injúrias; esperávamos pacientemente até que estivesse cheia a medida das tuas blasfêmias, dos teus insultos aos sacerdotes e violações do Sábado. Quem são os teus discípulos? Onde estão? Agora te calas? Fala, agitador e sedutor do povo? Já comeste o cordeiro pascal de modo insólito, à hora e em lugar fora de costume. Queres introduzir uma nova doutrina? Quem te deu o direito de ensinar? Onde estudaste? Qual é a tua doutrina, que excita a todos? Responde, fala! Qual é a tua doutrina”?

         Então levantou Jesus a cabeça fatigada e, fitando Anás, disse: “Tenho falado em público, diante de todo o mundo, em lugares onde todos os judeus costumam reunir-se. Não tenho dito nada em segredo. Porque me perguntas a mim? Pergunta àqueles que me ouviam, eles sabem o que tenho falado”.

         Como o rosto de Anás, a essas palavras de Jesus, manifestasse ódio e raiva, um esbirro infame, miserável e adulador, que estava ao lado de Jesus e que o percebeu, bateu, com a mão de ferro, na boca e face de Nosso Senhor, dizendo: “Assim é que respondes ao Sumo Pontífice?” – Jesus, abalado pela veemência da pancada e arrancado e empurrado pelos soldados, caiu sobre a escada de lado e o sangue escorreu-lhe do rosto; a sala retumbou de escárnio, murmúrio, insultos e risadas. Levantaram Jesus com brutalidade e Ele disse calmamente: “Se falei mal, mostra-me em que; se eu disse a verdade, porque me feres?”

         Anás, enfurecido pela calma de Jesus, convidou todos os presentes a dizer, como Ele próprio queria, o que dEle tinham ouvido, o que ensinava. Seguiu-se então uma grande vozeria e gritaria daquele populacho: Ele disse que era rei, que era Filho de Deus, que os fariseus eram adúlteros; Ele agitava o povo, curava no sábado, com auxílio do demônio; o povo de Ofel rodeava-O como dementes, chamava-O seu Salvador e Profeta; Ele se deixava chamar Filho de Deus; Ele mesmo se dizia enviado por Deus, chamava a maldição sobre Jerusalém, falava da destruição da cidade, não guardava o jejum, percorria o país seguido de multidões de povo, comia com ímpios, pagãos, publicanos e pecadores, levava em sua companhia mulheres de má vida, havia pouco tinha dito em Ofel que daria a quem lhe deu água a beber, água da vida eterna e ele não teria mais sede; seduzia o povo com palavras equivocas, desperdiçava o bem alheio, pregava ao povo muitas mentiras sobre seu reino e muitas outras coisas.

         Todas essas acusações foram proferidas ao mesmo tempo, numa grande confusão. Os acusantes avançavam para Jesus, lançando-Lhe em rosto essas acusações, acompanhadas de insultos e os soldados empurravam-nO para cá e para lá, dizendo: “Fala! Responde!” Anás e os conselheiros tomavam também parte, gritando-lhe, com riso sarcástico: “Ora, agora ouvimos a tua doutrina. É boa! Que respondes? É essa então a tua doutrina pública? O país está cheio dela. Aqui não tens nada que dizer? Porque não ordenas? Oh, rei? Oh, enviado de Deus, mostra a tua missão?”

         A cada uma dessas exclamações dos superiores, seguiam-se arrancos, empurrões e insultos da parte dos soldados e de outros que estavam próximo, que todos de boa vontade teriam imitado o que Lhe batera na face.

         Jesus cambaleava de um lado para o outro e Anás disse-lhe, com impertinência insultante: “Quem és? Que espécie de rei ou enviado? Eu julgava que fosses o filho de um marceneiro obscuro. Ou és acaso Elias, que foi levado ao Céu num carro de fogo? Dizem que ele ainda vive. Sabes também te tornar invisível, assim escapaste muitas vezes. Ou és por acaso Malaquias? Sempre tens feito gala com esse profeta, interpretando-lhe as palavras como se falasse de ti mesmo. Anda também a respeito dele um boato, que não tinha pai, que era um Anjo e não morreu; boa oportunidade para um embusteiro fazer-se passar por ele. Dize, que espécie de rei és? És maior do que Salomão? Esta é também uma afirmação tua. Está bem, não te quero privar mais tempo do título de teu reino”.

         Anás mandou, pois, trazer uma tira de pergaminho, de ¾ de côvado de comprimento e da largura de três dedos, pô-la sobre uma tabuinha, que seguravam diante dele e escreveu com uma pena de caniço uma série de letras grandes, cada uma das quais continha uma acusação contra o Senhor. Enrolou-a depois e pô-la numa pequena cabaça, fechando esta com uma rolha e amarrando-a a um caniço, mandou entregar-Lhe esse certo irrisório e dirigiu-Lhe, com riso satírico, algumas palavras, como: “Eis aqui o cetro de teu reino; contém todos os teus títulos, dignidades e direitos. Leva-os ao Sumo Sacerdote, para que conheça a tua missão e o teu reino e te trate como convém à tua posição. Amarrai-Lhe as mãos e levai este rei ao Sumo Sacerdote”.

Então amarravam de novo as mãos de Jesus, que antes tinham desligado, cruzando-lhas sobre o peito e pondo nelas o cetro afrontoso, que continha as acusações de Anás. Assim conduziram o Senhor, entre risadas, insultos e brutalidades, da grande sala de Anás para a casa de Caifás.


6. Jesus é conduzido de Anás a Caifás

           
Ao ser conduzido à casa de Anás, Jesus passara já pelo lado da casa de Caifás; reconduziram-nO depois para lá, descrevendo um ângulo. Da casa de Anás à de Caifás haveria talvez a distância de trezentos passos. O caminho, que passa entre muros e pequenos edifícios pertencentes ao tribunal de Caifás, era iluminado por braseiros, colocados em cima de paus e estava cheio de uma multidão clamorosa de frenéticos judeus. Mal podiam os soldados reter a multidão.

Aqueles que tinham ultrajado a Jesus na casa de Anás, repetiram então a seu modo as palavras afrontosas desse último diante do povo e Jesus foi maltratado e injuriado em todo o percurso do caminho. Vi criados armados do tribunal afastarem pequenos grupos de pessoas que choravam, lastimando a Jesus, enquanto que deixavam entrar no pátio da casa de Caifás e davam dinheiro a outros que se distinguiam acusando e insultando o Divino Mestre.
        

7. O Tribunal de Caifás

           
Para chegar ao tribunal de Caifás, passa-se primeiro por um portão a um vasto pátio exterior, depois por outro portão a outro pátio que, com os outros muros, cerca toda a casa. (Nos trechos seguintes daremos a este pátio o nome de “pátio interior”).

A casa tem de comprimento mais de duas vezes a largura; a parte dianteira consta de uma sala, chamada vestíbulo ou átrio, lajeada, aberta, no meio, sem teto, cercada por três lados de colunatas cobertas, nas quais se acham também as entradas para o átrio. A entrada principal do átrio é no lado comprido da casa. Entrando ali, vê-se, à esquerda, uma fossa revestida de alvenaria, onde é mantida uma fogueira; dirigindo-se à direita, avista-se, atrás de algumas colunas mais altas e num plano alguns degraus mais acima uma sala coberta, que forma o quarto lado do átrio e tem mais ou menos a metade do tamanho desse. Nessa sala, no espaço alguns degraus mais alto, estão os assentos dos membros do conselho, dispostos num semicírculo. O assento do Sumo Pontífice está no meio da sala.

O lugar do acusado, com os guardas, achasse no centro do semicírculo; em ambos os lados e atrás dele, até o átrio, o lugar dos acusadores e das testemunhas. A esse estrado semicircular dos juízes, conduzem, no fundo, três entradas que dão para uma sala maior, de forma semicircular, ao longo de cujas paredes há também assentos. Ali têm lugar as sessões secretas. A direita e à esquerda da entrada, vindo do tribunal, há nessa sala portas e escadas, que dão para fora, para o pátio interior, que, seguindo a forma da casa, também é de forma semicircular. Saindo pela porta da sala, à direita e virando-se no pátio à esquerda do edifício, chega-se à porta de uma cadeia subterrânea, que se estende sob a sala posterior, que está num plano mais alto do que o átrio e assim dá lugar para adegas subterrâneas. Há diversos cárceres nesse pátio circular; num deles vi S. Pedro e S. João presos por uma noite, depois de Pentecostes, quando Pedro curou o paralítico na Porta Bela do Templo.

         No edifício e em redor havia inúmeras lanternas e fachos; estava claro como dia. Além disso concorria também para a iluminação a fossa da fogueira, no centro do átrio; era como um fogão colocado dentro do chão, aberto em cima, onde se lançava o combustível, que me pareceu ser carvão de pedra. Nos lados sobressaiam, à altura de um homem, tubos parecidos com chifres, para deixarem sair a fumaça; no meio, porém, se via o fogo. Soldados, soldados, muita gente de populacho e falsas testemunhas subornadas apinhavam-se em roda do fogo. Também se achavam ali mulheres e raparigas de má vida, que ofereciam aos soldados uma bebida vermelha e coziam-lhes bolos por dinheiro. Era um movimento como nos dias de carnaval.

         A maior parte dos conselheiros convocados já estavam reunidos em torno do Sumo Sacerdote, no semicírculo elevado do tribunal; de vez em quando chegavam ainda alguns. Os acusadores e testemunhas falsas quase enchiam o átrio. Muita gente quis entrar à força, mas era repelida pelos soldados.

         Pouco antes da chegada do cortejo de Jesus, vieram. Também Pedro e João, revestidos dos mantos dos mensageiros do tribunal e entraram no pátio exterior.
João, com auxilio do empregado, conhecido seu, pôde mesmo entrar pela porta do pátio interior, a qual, porém, foi fechada atrás dele, por causa do povo impetuoso. Pedro, atrasado pela multidão, já encontrou fechada a porta do pátio interior e a porteira não quis deixá-lo entrar. João disse-lhe que lhe abrisse; mas mesmo Pedro não poderia ter entrado, se não tivessem chegado nesse momento Nicodemos e José de Arimatéia, fazendo-o entrar com eles. No pátio interior entregaram os mantos aos tais criados e colocaram-se silenciosos no meio da multidão, à direita, de onde se podiam avistar os assentos dos Juízes.

         Caifás já estava sentado no meio do semicírculo graduado, em roda se lhe sentavam cerca de setenta membros do Conselho Supremo. Muitos deputados comunais, anciãos e escribas estavam em pé ou sentados aos dois lados e em torno deles, muitas testemunhas e patifes. Do pé do tribunal, sob as colunatas, pelo átrio, até à porta pela qual se esperava a entrada de Jesus, forma dispostos soldados; aquela porta não era a que ficava em frente às cadeiras dos juízes, mas uma outra, à esquerda do átrio.

         Caifás era um homem de aspecto sério, olhar colérico e ameaçador; estava vestido de um longo manto vermelho, ornado de florões e orlas de ouro, atado sobre os ombros, o peito e na frente, por muitas placas brilhantes. Na cabeça trazia um barrete, que na parte superior tinha semelhança com uma mira; entre as partes anterior e posterior desse, havia aberturas, dos lados, das quais pendiam pequenas faixas de pano, que caiam sobre os ombros. Caifás já convocara havia muito tempo os partidários, entre os membros do Sinédrio; muitos estavam reunidos desde que Judas saíra com a tropa de soldados. Cresceu a tal ponto a impaciência e raiva de Caifás, que desceu do alto assento, correndo, com todo o seu aparatoso ornato, ao átrio e perguntou furioso se Jesus ainda não estava chegando; nesse momento o cortejo vinha se aproximando e Caifás voltou para o assento.


8. Jesus diante de Caifás.


            Entre frenéticos gritos de insulto, com empurrões e arrancos, foi Jesus conduzido pelo átrio, onde a desenfreada fúria do populacho se moderou, reduzindo-se a um sussurro e murmúrio surdo de raiva contida. Da entrada dirigiu-se o cortejo à direita, para o tribunal. Passando por Pedro e João, o querido Salvador, olhou-os, mas sem virar a cabeça para eles, para não os trair. Mal Jesus tinha chegado, por entre as colunas, em frente do tribunal, Caifás já lhe gritou: “Então chegaste, blasfemador de Deus, que nos tens profanado esta santa noite”.

         Tiraram então o cetro irrisório de Jesus, a cabeça, na qual se achavam as acusações escritas por Anás; depois de ler as acusações, Caifás lançou uma torrente de insultos e acusações contra Jesus, enquanto os esbirros e soldados em roda puxavam e empurravam Nosso Senhor; tinham nas mãos curtos bastões de ferro, em cuja extremidade havia um castão munido de muitas pontas; com esses bastões empurravam a Jesus, gritando: “Responde, abre a boca. Não sabes falar?”

Fizeram tudo isso enquanto Caifás, ainda mais assanhado do que Anás, dirigiu um sem número de perguntas a Jesus, que, silencioso e paciente, olhava para baixo sem levantar os olhos para Caifás. Os soldados quiseram forçá-Lo a falar, davam-Lhe murros na nuca e nos lados, batiam-Lhe nas mãos e picavam-nO com sovelas; houve até um vil patife que lhe apertou o polegar o lábio inferior sobre os dentes, dizendo: “Agora morde!”
        
Seguiu-se a audição das testemunhas. Mas em parte era só uma gritaria confusa do populacho subornado ou então depoimentos de vários grupos dos mais assanhados inimigos de Jesus, entre os fariseus e saduceus do todo o país, reunidos por ocasião da festa. Proferiram de novo tudo o que Ele mil vezes tinha refutado; disseram: “Ele cura e expulsa os demônios pelo próprio demônio; não guarda o sábado; quebra o jejum; os seus discípulos não lavam as mãos; Ele seduz o povo; chama os fariseus de raça de víboras, de adúlteros; prediz a destruição de Jerusalém; tem relações com pagãos, publicanos, pecadores e mulheres de má vida; percorre o país, seguindo de grande multidão de povo; faz-se chamar rei, profeta, até Filho de Deus, fala sempre do seu reino; contesta o direito do divórcio; proferiu ameaças sobre Jerusalém; chama-se pão da vida, ensina coisas inauditas, dizendo que quem não Lhe comer a carne e não Lhe beber o sangue, não poderá ser salvo”.

         Desse modo eram torcidas e viradas ao contrario todas as palavras, doutrina e parábolas de Jesus, para servirem de acusações, sempre interrompidas por insultos e brutalidades. Mas todos contradiziam e se confundiam uns aos outros. Um disse: “Ele se faz passar por rei”; outro: “Não, Ele se deixa apenas chamar assim e quando O quiseram proclamar rei, fugiu”. Então gritou um: “Mas Ele diz que é Filho de Deus”; outro, porém, replicou: “Não, Ele não disse isso, chama-se Filho só por fazer a vontade do Pai”. Alguns exclamaram que Ele os tinha curado, mas que depois recaíram; as curas eram apenas feitiço”.

Quase todas as acusações consistiam essencialmente em acusá-lo de feitiçaria. Algumas falsas testemunhas depuseram também sobre a cura do homem na piscina de Betesda, mas mentiram e confundiram-se. Os fariseus de Seforis, com os quais tinha discutido sobre o divorcio, acusaram-nO de falsa doutrina e até aquele jovem de Nazaré a quem Ele não quisera aceitar como discípulo, teve a vileza de comparecer ali, para dar testemunho contra Ele. Acusaram-nO também de ter absolvido a adúltera no Templo e ter acusado os fariseus.

         Contudo não eram capazes de encontrar qualquer acusação solidamente provada. Os grupos de testemunhas que entravam e saiam, começaram a insultar Jesus, em lugar de depor contra Ele. Discutiam veemente uns com os outros e nos intervalos Caifás e alguns dos conselheiros continuavam incessantemente a insultar Jesus, gritando-Lhe, entre as várias acusações: “Que rei és tu? Mostra teu poder. Manda vir as legiões de Anjos, das quais falaste no horto das Oliveiras. Que fizeste do dinheiro das viúvas e das pessoas que se deixaram enganar? Tantas riquezas que desperdiçaste, que foi feito dela? Responde, fala! Agora que devias falar, diante do juiz, ficas calado; mas onde terias feito melhor em calar-te, diante do populacho e mulherio, aí te abundavam as palavras, etc”.

         Todas essas perguntas eram acompanhadas de incessantes crueldades dos soldados, que, com pancadas e murros, queriam forçar Jesus a responder. Só por milagre de Deus pôde Jesus agüentar tudo isso, para expiar os pecados do mundo. Algumas testemunhas infames afirmaram que Jesus era filho ilegítimo, mas imediatamente replicaram outros: “É mentira; pois sua mãe era uma moça piedosa do Templo e nós assistimos à cerimônia do seu casamento com um homem muito religioso”. Essas testemunhas começaram a discutir.

         Acusaram também Jesus e os discípulos de não oferecerem sacrifícios no Templo. Eu também nunca vi Jesus ou os Apóstolos, desde que O seguiam, levarem animais de sacrifício ao Templo, a não ser os cordeiros de Páscoa. Essa acusação não era justa; pois também os Essenos não ofereciam sacrifícios, sem por isso merecerem castigo. A acusação de feitiçaria repetiu-se muitas vezes e o próprio Caifás afirmou diversas vezes que a confusão das testemunhas era efeito da arte mágica.

         Alguns acusaram então Jesus de ter comido o cordeiro pascal já de véspera, contrariamente ao costume e de ter alterado a ordem dessa cerimônia já no ano anterior; por isso começaram de novo a injuriar e insultar Jesus. Mas os depoimentos das testemunhas eram tão confusos e contraditórios, que Caifás e todo o Sinédrio ficaram envergonhados e furiosos, porque não podiam encontrar nada que de qualquer modo pudessem provar.

Nicodemos e José de Arimatéia foram também convidados a se justificarem de ter Jesus comido a Páscoa no Cenáculo deles, em Sião. Compareceram diante de Caifás e provaram, com antigos documentos, que os galileus podiam comer o cordeiro pascal um dia antes, conforme um direito imemorial; além disso, acrescentaram, foram observados as cerimônias prescritas, pois estiveram presentes homens empregados do Templo. Com essa afirmação ficaram as testemunhas muito embaraçadas e o que vexava os inimigos de Jesus, era ter Nicodemos mandado trazer os rolos de lei e provado com estes o direito dos galileus.

Além de diversos motivos para esse direito dos galielus, os quais esqueci, foi alegado que seria impossível, com a afluência do povo, acabar as cerimônias no tempo prescrito pela lei do sábado; também haveria inconveniências na volta, pela multidão do povo nos caminhos. Apesar dos galileus nem sempre usarem desse direito, ficara, porém, perfeitamente provado pelos documentos alegados por Nicodemos.

A ira dos fariseus cresceu ainda mais, quando Nicodemos terminou o discurso pela observação de que todo o Sinédrio se devia sentir ultrajado, diante do povo reunido, por um processo feito com tal precipitação e preconceito, na noite de um dia tão santo e com a confusão e contradição tão aberta de todas as testemunhas, com precipitação e imprudência ainda maior.

         Depois de muitos depoimentos falsos, vis e mentirosos, se apresentaram mais duas testemunhas, dizendo: Jesus disse que queria destruir o Templo feito pelas mãos de homens e construir em três dias outro, que não seria feito por mãos de homens. Mas também esses dois não estavam de acordo; um disse que Jesus queria construir um templo novo; por isso teria celebrado a Páscoa num outro edifício, porque queria destruir o antigo Templo, o outro, porém, disse que aquele edifício também fora construído por mãos de homens e que portanto não se referia a ele.

         Caifás chegou então ao auge da cólera; pois as crueldades praticadas para com Jesus, as afirmações contraditórias das testemunhas, a inefável paciência e o silêncio do Salvador, causaram impressão desfavorável a muitos dos presentes. Algumas vezes foram as testemunhas até vaiadas. Muitos ficaram inquietos no coração, vendo o silêncio de Jesus e cerca de dez soldados afastaram-se, sob pretexto de se sentirem indispostos. Esses, passando diante de Pedro e João, lhes disseram: “Este silêncio do galileu, num processo tão infame, dói no coração, é como se a terra se fosse abrir e tragar-nos; dizei-nos aonde nos devemos dirigir”.

         Caifás, furioso pelos depoimentos contraditórios e a confusão das duas últimas testemunhas, levantou-se do assento, desceu alguns degraus, até onde estava Jesus e disse: “Não respondes nada a esta acusação?” Indignou-se, porém, de Jesus não o fitar; os soldados puxaram então, pelos cabelos, a cabeça de Nosso Senhor, para trás e bateram-lhe com os punhos por baixo do queixo. Mas o Senhor não levantou os olhos. Caifás, porém, estendeu com veemência as mãos e disse em tom furioso: “Conjuro-Te pelo Deus vivo, que nos diga se és o Cristo, o Messias, o Filho de Deus e Bendito!”

         Acalmaram-se a vozeria e seguiu-se um silêncio solene em todo o átrio; Jesus, fortalecido por Deus, disse, com uma voz cheia de inefável majestade, que fazia estremecer a todos, com a voz do Verbo Eterno: “Eu o sou, disseste-o bem. E eu vos digo que em breve vereis o Filho do homem assentado à mão direita da majestade de Deus, vindo sobre as nuvens do céu”.

         Durante essas palavras vi Jesus como que luminoso e sobre Ele, no céu aberto, Deus Pai Todo-poderoso, numa visão inexprimível; vi os Anjos e as orações dos justos, suplicando e orando em favor de Jesus. Vi, porém, como se a divindade de Jesus falasse simultaneamente do Pai e do Filho: “Se eu pudesse sofrer; mas porque sou misericordioso, aceitei a natureza humana no Filho, para que nela sofresse o Filho do Homem; pois sou justo e ei-Lo que toma sobre si os pecados de todos estes homens, os pecados de todo o mundo”.
        
Por baixo de Caifás, porém, vi aberto todo o inferno, um círculo lúgubre de fogo, cheio de figuras hediondas e ele por cima desse círculo, sustentado apenas como por um crepe fino. Vi-o penetrado pela fúria do inferno. Toda a casa me parecia um inferno agitado por baixo. Quando o Senhor Declarou que era o Filho de Deus, o Cristo foi como se o inferno tremesse diante dEle e fizesse subir a essa casa toda a sua fúria contra o Salvador.

         Mas como tudo me é mostrado em imagens e figuras (cuja linguagem é para mim também mais verdadeira, curta e clara do que outras explicações, pois os homens também são formas corporais e sensíveis e não somente palavras abstratas), vi o medo e o ódio do inferno manifestar-se sob inúmeras figuras horríveis, que subiam em muitos lugares, como saindo da terra.

Entre outras me lembro ainda de bandos de pequenas figuras escuras, semelhantes a cães, que andavam nas patas traseiras, curtas e com garras compridas, mas não me lembro mais que espécie de vício representavam essas figuras; sabia-o naquele tempo, mas agora só me lembro da forma. Tais figuras horrendas vi entrar na maior parte dos assistentes, ou sentar-se nos ombros ou sobre a cabeça deles. A assembléia estava cheia dessas figuras e a fúria aumentava cada vez mais em todos os maus.

Nesse momento vi também muitas figuras hediondas, saindo dos sepulcros, além de Sião; creio que eram espíritos maus. Vi também, perto do Templo, saírem da terra muitas aparições e entre essas, diversas que pareciam arrastar-se com cadeias, como presos; não sei mais se essas últimas aparições eram espíritos maus ou almas condenadas a habitarem certos lugares da terra e que talvez se dirigissem ao limbo, que o Senhor abriu pela sua própria condenação à morte.

– Não se podem exprimir exatamente essas coisas, nem quero escandalizar aos que as ignoram, mas ao vê-las, sente-se um arrepio. Esse momento tinha algo de horrível. Creio que também João deve ter visto alguma coisa, pois ouvi-o falar disso mais tarde; pelo menos todos os que não eram ainda inteiramente maus, sentiram, com um medo profundo, o horror desse momento; os maus, porém, sentiram-se numa violenta erupção de ódio.

         Caifás, como inspirado pelo inferno, apanhou a orla do mando oficial, cortou-a com uma faca e rasgou o manto, com um ruído sibilante, gritando: “Ele blasfemou! Para que precisamos de testemunhas? Vós mesmos ouvistes a blasfêmia; que julgais?” Então se levantaram todos quantos ainda estavam presentes e gritaram, com voz terrível: “É réu de morte. É réu de morte”.

         A esse grito, a fúria do inferno tornou-se naquela casa verdadeiramente terrível: os inimigos de Jesus estavam como embriagados por Satanás e do mesmo modo os servos aduladores e abjetos. Era como se as trevas proclamassem o seu triunfo sobre a luz. Causou tal horror aos que ainda conservavam um pouco de bom sentimento, que muitos destes saíram furtivamente, envolvidos nos mantos.
Também as testemunhas mais notáveis, como não lhes fosse mais necessária a presença, saíram do tribunal, sentindo remorsos da consciência. Outros, mais vis, vadiavam pelo átrio e em redor da fogueira, onde, depois de recebido dinheiro, começaram a comer e beber.

         O Sumo Sacerdote disse, porém, aos soldados: “Entrego-vos este rei; prestai a este blasfemo a devida honra”. Depois se retirou com os membros do Conselho, à sala circular, situada atrás do tribunal, cujo interior não se podia ver do átrio.

         João, cheio de profunda tristeza, lembrou-se então da pobre Mãe de Jesus. Receou que a terrível notícia, comunicada por um inimigo, pudesse feri-la ainda mais e por isso lançando mais um olhar ao Santo dos santos, disse no seu coração: “Mestre, bem sabeis porque me vou embora” e saiu  apressadamente do tribunal, indo à SS. Virgem, como se fosse enviado por Jesus mesmo. Pedro, porém, todo abalado pela angústia e pela dor e sentido, devido à fadiga, ainda mais o frio penetrante da manhã, ocultava a tristeza e o desespero o mais que podia e aproximou-se timidamente da fogueira no átrio, rodeada pelo populacho, que ali se aquecia. Não sabia o que estava fazendo, mas não podia separar-se do Mestre.


9. Jesus é escarnecido e maltratado em casa de Caifás


         Quando Caifás saiu, com todo o conselho do tribunal, deixando Jesus entregue aos soldados, lançou-se o bando de todos os malvados patifes aí presentes, como um enxame de vespas irritadas, sobre Nosso Senhor, que até então estava seguro com cordas por dois dos quatro primeiros soldados; os outros tinham se afastado antes do interrogatório, para se revezarem com outros. Já durante a audição os soldados e outros malvados arrancaram tufos inteiros do cabelo e da barba do Senhor. Alguns homens bons apanharam parte do cabelo do chão e afastaram-se furtivamente com ele; mas depois lhes desapareceu.

O bando vil dos soldados também já tinham cuspido em Jesus, durante o interrogatório que lhe tinham dado inúmeros murros, batido com paus que terminavam em bulbos munidos de pontas e picado com alfinetes; mas depois descarregaram a raiva de um modo insensato sobre o pobre Jesus. Punham-Lhe na cabeça várias coroas, trançadas de palha e cortiça, de formas ridículas e tiravam-nas novamente, com palavras maldosas e escárnio. Ora diziam: “Ei-Lo, o Filho de Davi, com a coroa de seu Pai!” ora: “Eis aqui está quem é mais do que Salomão!” ou: “Este é o rei que prepara as núpcias do filho” e assim escarneciam nEle toda a verdade eterna que tinha proferido em ensinamentos e parábolas, para a salvação dos homens... Batiam-Lhe com punhos e paus, empurravam-nO, cuspindo nEle de um modo nojento.

         Trançaram ainda uma coroa de palha grossa de trigo, que ali cultivavam, puseram-Lhe na cabeça um boné alto, parecido com uma mitra de um bispo de hoje e em cima a grinalda de palha; já antes O tinham despido da túnica tecida. Lá estava o pobre Jesus, vestido apenas de tanga e escapulário sobre peito e costas; mas também esse último, ainda lhO arrancaram e não Lhe foi mais restituído.

Jogaram-Lhe sobre os ombros um manto velho, esfarrapado, cuja parte anterior nem Lhe cobria os joelhos e em redor do pescoço lhe puseram uma cadeia de ferro, que, como uma estola, lhe pendia sobre o peito, até os joelhos; essa cadeia terminava em duas argolas largas e pesadas, munidas de pontas agudas, que lhe feriam dolorosamente os joelhos, quando andava ou caia.

Amarraram-Lhe de novo as mãos sobre o peito, pondo nelas um caniço e cobriram-Lhe o rosto divino com o escarro nojento das suas bocas imundas. O cabelo de Jesus, a barba, o peito e a parte superior do manto estavam cobertas de imundícies nauseabundas; venderam-Lhe com um farrapo sujo os olhos, batiam-Lhe com punhos e bastões, gritando: “Grande profeta! Profetiza, quem te bateu”. Ele, porém, nada dizia: gemia e orava no íntimo do coração por eles, que continuavam a bater-Lhe.

Assim maltratado, disfarçado e sujo, arrastaram-nO pela corrente à sala atrás do tribunal. Empurraram-nO diante de si, a pontapés e pauladas, com risadas de escárnio, gritando: “Vamos com o rei de palha; ele deve apresentar-se também ao Conselho, com as honras que Lhe temos prestado”. Entrando na sala, onde ainda se achavam Caifás e muitos membros do Conselho, começaram de novo a escarnecer do Divino Salvador, com vis gracejos e alusões sacrílegas a santos usos e cerimônias.

Assim como no átrio, cuspiram-Lhe e sujaram-nO, gritando: “Eis aqui tua unção de profeta e rei!” Aludiram também à unção de Madalena e ao batismo: “Como, gritaram, queres comparecer tão sujo diante do Supremo Conselho? Querias sempre purificar os outros e não estás limpo; mas vamos limpar-Te agora”. Trouxeram então uma bacia com água suja e fétida, na qual havia um farrapo grosso e nojento e entre murros, escárnio e insultos, interrompidos apenas por cumprimentos e inclinações derrisórias, uns mostrando-Lhe a língua, outros virando-lhes as costas em posições indecentes, passaram-Lhe o farrapo sujo pelo rosto e os ombros, fingindo limpá-Lo, mas sujando-O ainda mais; depois Lhe entornaram todo o conteúdo nojento da bacia sobre a cabeça e o rosto, gritando: “Aí tens o teu batismo da piscina de Betsaida”.

         Com essa última palavra escarnecedora compararam-nO, sem premeditação, ao cordeiro pascal; pois os cordeiros que nesse dia eram imolados, eram antes lavados no tanque perto da Porta das Ovelhas e depois levados à piscina de Betsaida, onde recebiam uma aspersão cerimonial, antes de serem imolados no Templo. Os soldados, porém, aludiam ao doente de 38 anos, que fora curado na piscina de Betsaida; pois vi-o ali batizar ou lavar; digo, batizar ou lavar” porque não tenho recordação clara disso neste momento.

         Depois arrastaram e empurraram Jesus, com murros e pancadas, por toda a sala, passando em frente dos membros do Conselho, ainda reunidos, que todos O insultavam e escarneciam. Vi tudo cheio de figuras diabólicas; era um movimento sinistro, confuso e horrível. Mas em redor de Jesus maltratado vi muitas vezes um esplendor luminoso, desde que dissera que era o Filho de Deus. Muitos dos presentes pareciam senti-Lo também mais ou menos, vendo com certa inquietação que todos os insultos e maus tratos não Lhe podiam tirar a majestade inexprimível.

Os inimigos obcecados pareciam sentir esse esplendor somente pela erupção mais forte de sua ira e de seu ódio; a mim, porém, parecia esse esplendor tão manifesto, que não podia deixar de pensar que velavam o rosto de Jesus, só porque o Sumo Sacerdote, desde que ouvira a palavra: “Eu o sou”, não podia mais suportar o olhar do Salvador.

        
10. A negação de Pedro


            Quando Jesus disse, em tom solene: “Eu o sou”, quando Caifás rasgou o próprio manto, quando o grito: “É réu de morte!” interrompeu os insultos e ultraje da gentalha, quando se abriu sobre Jesus o céu da justiça e o inferno desencadeou sua fúria e dos sepulcros saíram os espíritos presos, quando tudo estava cheio de medo e horror; então Pedro e João, que tinham sofrido muito por serem obrigados a ver, em silêncio e inação, o cruel tratamento de Jesus, sem poder manifestar compaixão, não agüentaram mais ficar ali.

João saiu, juntamente com muita gente e testemunhas e dirigiu-se apressadamente a Maria, Mãe de Jesus, que se achava com as mulheres piedosas em casa de Marta, perto da Porta do Ângulo, onde Lázaro possuía um grande edifício. Pedro, porém, não podia afastar-se, amava demasiadamente a Jesus. Não podia conter-se; chorava amargamente, esforçando-se por esconder as lágrimas. Não quis ficar, pois sua consternação te-lo-ia traído, nem podia ir a outra parte, sem causar estranheza aos outros. Dirigiu-se por isso ao atiro, ao canto da fogueira, onde se, apinhavam soldados e muitos homens do populacho, que iam e voltavam, para ver escarnecer de Jesus e faziam observações baixas e maliciosas.

Pedro conservava-se calado, mas esse silêncio e o ar de tristeza do rosto deviam torná-lo suspeito aos inimigos do Mestre. Aproximou-se então também do fogo a porteira e, como todos falassem de Jesus e o insultassem, também entrou na conversa, à maneira das mulheres impertinentes e, olhando para Pedro, disse: “Tu também és um discípulos do Galileu!” Pedro tornou-se embaraçado e inquieto e, receando que aquela gente grosseira o maltratasse, disse: “Oh, mulher! Eu não O conheço; não sei e nem compreendo o que queres dizer”. Levantou-se e com a intenção de livrar-se deles, saiu do átrio; foi à hora em que o galo, fora da cidade, cantou pela primeira vez; não me lembro de tê-lo ouvido, mas senti que então cantou.

Saindo Pedro do átrio, viu-o outra criada e disse a alguns que estavam ali: “Este também tem estado com Jesus” e eles disseram: “Não eras também um dos discípulos do Galileu?” Pedro, assustado e confuso, exclamou, protestando: “Em verdade, não o era, nem conheço esse homem”.

Depois se afastou depressa do primeiro pátio para o exterior, afim de prevenir do perigo alguns conhecidos, que vira olharem por cima do muro. Chorou e estava tão cheio de angústia e tristeza, por causa de Jesus, que quase não se lembrava da sua negação. No pátio exterior estava muita gente e também amigos de, Jesus, que não foram admitidos ao pátio interior; mas a Pedro foi permitido sair. Aquela gente trepara no muro, para espiar o que esse passava e Pedro encontrou entre eles muitos dos discípulos de Jesus, os quais a busca de notícias tinham corrido das cavernas dos vale Hinom para lá. Esses se acercaram logo de Pedro, interrogando-o entre lágrimas, a respeito de Jesus; mas ele estava tão abatido e tinha tanto medo de trair-se, que lhes aconselhou retirar-se, por haver ali perigo para eles.

Depois se separou deles, indo tristemente pelos pátios enquanto os outros saíram com pressa da cidade. Estiveram ali cerca de 16 dos primeiros discípulos, entre eles Bartolomeu, Natanael, Saturnino, Judas Barsabas, Simeão, mais tarde bispo de Jerusalém, Zaqueu e Manaem, o profético jovem, cego de nascença e curado por Jesus.
        
Pedro não achou sossego; o amor de Jesus impelia-o ao pátio interior, que cercava a casa; deixaram-no entrar, de novo, porque Nicodemus e José de Arimatéia o mandaram entrar, na primeira vez. Não voltou imediatamente à sala do tribunal, mas dirigiu-se à direita, indo ao longo da casa, para a entrada da sala atrás do tribunal, onde o bando de soldados já estava conduzindo Jesus em redor da sala, com vaias e insultos.

Pedro aproximou-se medroso; posto que se sentisse observado como suspeito, impelia-o a ânsia por Jesus a enfiar-se pela porta, ocupada por gente baixa, que estava assistindo àquela cena de escárnio. Nesse momento estavam arrastando Jesus, coroado com a grinalda de palha, em redor da sala. O Senhor lançou a Pedro um olhar sério de repreensão. Pedro ficou como que esmagado pela dor. Mas, lutando com o medo e ouvindo alguns dos circunstantes dizerem: “Quem é este sujeito?”, saiu novamente para o pátio, tão abatido e tão confuso pelo medo, que andava cambaleando a passos lentos.

Vendo-se, porém, observado, entrou de novo no átrio, aproximou-se da fogueira, ficando ali bastante tempo sentado, até que diversas pessoas, que fora lhe tinham notado a confusão, entraram, começando de novo a provocá-lo, falando mal de Jesus e de suas obras. Um deles, chamado Cássio e mais tarde Longino, disse então: “É verdade, também és daquela gente; és galileu, tua linguagem prova-o”. Como Pedro quisesse sair com um pretexto, impediu-o um irmão de Malco, dizendo: “O que? Não te vi com eles no horto das Oliveiras? Não feriste a orelha de meu irmão?” Tornou-se Pedro então como insensato, pelo pavor que o dominou e livrando-se deles, começou a praguejar (tinham um gênio violento) e jurar que absolutamente não conhecia esse homem e correu do átrio para o pátio interior. Foi à hora em que o galo cantou de novo; os soldados conduziram Jesus, nesse mesmo momento, da sala circular, pelo pátio para o cárcere que ficava sob a sala.

Virou-se, porém, o Senhor e olhou para Pedro com grande dor e tristeza; lembrou-se Pedro então da palavra de Jesus: “Antes do galo cantar duas vezes, negar-me-ás três vezes”, e essa lembrança pesou-lhe com terrível violência sobre o coração. Fatigado pelas angústias e o medo, tinha-se esquecido da promessa presunçosa de querer antes morrer, do que O negar e do aviso profético de Jesus; mas à vista do Mestre, esmagou-o a lembrança do crime que acabaça de cometer.

Tinha pecado; pecado contra o Salvador, tão cruelmente tratado, condenado, inocente, sofrendo tão resignado toda a horrível tortura. Como desvairado de contrição, saiu apressadamente pelo pátio exterior, a cabeça velada e chorando amargamente; não temia mais ser interrogado; teria então dito a todos quem era e que pecado lhe pesava na consciência.

         Quem se atreveria a dizer, que em tais perigos, angústias, em tal pavor e confusão, numa tal luta entre amor e medo, cansado, insone, prestes a perder a razão pela dor de tantos e tão tristes acontecimentos dessa noite horrível, com uma natureza tão simples com ardente, quem se atreveria a dizer que, em iguais condições, teria sido mais forte do que Pedro? O Senhor abandonou-o às próprias forças; tornou-se então tão fraco como o são todos os que esquecem as palavras: “Vigiai e orai, para não cairdes em tentação”.


11. Maria no tribunal de Caifás

           
A SS. Virgem, em contínua e profunda compaixão para com Jesus, sabia e sentia tudo que a Ele faziam. Sofria em contemplação espiritual e, como Ele, continuava em oração pelos carrascos. Mas o coração de mãe também lhe clamava a Deus que não permitisse esses pecados e que afastasse essas torturas do santíssimo Filho; durante todo esse tempo tinha o desejo irresistível de estar com o pobre Filho, tão cruelmente tratado.

Quando João, depois do grito: “É réu de morte!”, saiu do átrio de Caifás, vindo a ela, em casa de Lázaro, perto da porta do Ângulo e lhe confirmou com a triste narração e entre lágrimas, todos os terríveis tormentos de Jesus, os quais, em sua compaixão espiritual, já lhe, dilaceravam o coração, Maria pediu-lhe, como também Madalena, quase desvairada de dor e algumas outras mulheres, que as conduzisse ao lugar onde Jesus sofria.

João, que deixara Jesus só para consolar aquela que, depois de Jesus, lhe merecia mais amor, saiu da casa com a SS. Virgem, conduzida pelas santas mulheres; Madalena caminhava-lhes ao lado, torcendo as mãos. As ruas estavam iluminadas pelo claro luar e viam-se muitas pessoas, que voltavam para casa. Iam veladas as santas mulheres; mas o andar apressado e as exclamações de dor atraíam sobre elas a atenção de vários grupos de inimigos de Jesus que passavam e muitas palavras insultuosas e cruéis, proferidas de propósito em alta voz contra Jesus, renovavam-lhe a dor.

A Mãe de Jesus, sempre unida a Ele, na contemplação espiritual do seu suplício, caiu diversas vezes desmaiada, nos braços das companheiras; conservava tudo no coração, sofrendo em silêncio com Ele e como Ele. Quando desse modo caiu nos braços das mulheres, sob uma porta ou arcada da cidade interior, vieram-lhes ao encontro um grupo de pessoas bem intencionadas, que voltavam do tribunal de Caifás, lamentando a sorte do Mestre. Essas se aproximaram das santas mulheres e, reconhecendo a Mãe de Jesus, demoraram-se algum tempo, cumprimentando-a compadecidamente; “Oh! Mãe infeliz! Oh! Mãe, cheia de tristeza, Oh! Mãe dolorosa do mais Santo de Israel!” Maria, votando a si, agradeceu-lhes e continuaram o triste caminho a passo apressado.

         Avizinhando-se do tribunal de Caifás, passaram para o caminho do lado oposto da entrada, onde apenas um muro cerca a casa, enquanto que o lado da entrada conduz por dois pátios. Ali sobreveio nova dor amarga à Mãe de Jesus e às companheiras. Tinham de passar em frente a um lugar, um pouco elevado, onde estavam homens, sob uma leve tenda, aparando a Cruz de Jesus Cristo, à luz de lanternas.

Logo que Judas saíra para trair Jesus, os inimigos haviam ordenado que se preparasse uma cruz, para que, se Jesus fosse preso, Pilatos não tivesse motivo para atrasar a execução; pois já tinham a intenção de entregar Nosso Senhor de manhã cedo a Pilatos e não esperavam que levasse tanto tempo até a condenação. As cruzes para os dois ladrões, os romanos já as tinham preparado. Os operários amaldiçoavam e insultavam a Jesus, por terem de trabalhar durante a noite por causa dEle; todas as machadadas e todas essas palavras feriam e traspassavam o coração da pobre Mãe; mas ainda assim rezava por esses homens tão horrivelmente cegos, que, com maldições, preparavam o instrumento de sua redenção e do martírio de seu Filho.

         Tendo passado em volta da casa e chegado ao pátio exterior, Maria entrou, acompanhada das santas mulheres e de João, dirigindo-se à porta do pátio interior, que estava fechada. Tinha a alma cheia de intensa compaixão para com Jesus. Desejava ardentemente que a porta se abrisse e pudesse entrar, por intermédio de João; pois sentia que apenas essa porta a separava do Filho querido, que, ao segundo canto do galo, estava sendo levado do tribunal à cadeia subterrânea.

De súbito se abriu a porta e na frente de algumas pessoas saiu Pedro, correndo para eles, cobrindo com as mãos o rosto velado e chorando amargamente. À luz da lua e das lanternas, conheceu logo a João e a SS. Virgem; parecia-lhe que a voz da consciência lhe vinha ao encontro, na pessoa da Mãe de Jesus, depois que o seu Divino Filho a tinha despertado. Ah! Como ressoava a voz de Maria na alma de Pedro, quando ela disse: “Oh! Simão! Que fizeram de Jesus, meu Filho?” Ele não podia enfrentar o olhar de Maria, desviou os olhos para o lado, torcendo as mãos e não pôde proferir palavra. Mas Maria não o deixou, aproximou-se-lhe e perguntou com voz triste: “Simão, filho de Jonas, não me respondes?”

Então exclamou Pedro, na sua dor: “Oh, Mãe, não faleis comigo; vosso Filho sofre coisas indizíveis; não me faleis a mim, pois condenaram-nO à morte e eu O neguei vergonhosamente por três vezes”. E como João se aproximasse para falar-lhe, fugiu Pedro, desvairado de tristeza e saindo do pátio e da cidade, retirou-se àquela gruta do monte das Oliveiras, na qual as mãos de Jesus se tinham imprimido na pedra. (v. cap. 3.7 pelo fim). Creio que nessa gruta também nosso primeiro pai Adão fazia penitência, quando veio para a terra amaldiçoada por Deus.

         A SS. Virgem, sentindo com veemente compaixão essa nova dor de Jesus, a quem negara o mesmo discípulo que fora o primeiro a reconhecê-Lo como Filho de Deus vivo, caiu, após as palavras de Pedro, sobre a pedra ao lado da porta, onde estava e imprimiram-se-lhe as formas das mãos e dos pés na pedra, a qual ainda existe, mas não me lembro onde; tenho-a visto em qualquer parte.

As portas dos pátios estavam abertas, porque a maior parte do povo se retirava, depois que Jesus fora fechado na cadeia. Maria Santíssima, tendo voltado a si, desejava estar mais perto do Filho querido; João levou-a e as santas mulheres até diante da prisão do Senhor. Ah! Bem sentia Maria, a presença de Jesus e Jesus a de sua Mãe, mas a Mãe fiel quis também ouvir com os sentidos exteriores os gemidos do Filho adorado e ouvia-os e também às palavras insultuosas dos guardas.

Não podiam demorar-se ali muito sem ser notadas; Madalena, na veemência da dor, manifestava a comoção e embora Maria conservasse nessa extrema dor uma santa calma, que impunha respeito, devia também ouvir nesse curto caminho as palavras amargas e maliciosas: “Não é esta a mãe de Galileu? O filho com certeza há de morrer na cruz, mas naturalmente não antes da festa, a não ser que fosse o homem mais criminoso”. Então ela voltou e impelida pelo coração, foi ainda até à fogueira do átrio, onde havia ainda alguns populares; as companheiras seguiram-na, em dor silenciosa. Nesse lugar de horror, onde Jesus dissera que era Filho de Deus e a raça de Satanás gritara: “É réu de morte!”, Maria perdeu de novo os sentidos. João e as santas mulheres levaram-na dali, parecendo mais morta do que viva. A plebe nada disse, calou-se admirada; foi como se um espírito puro tivesse passado pelo inferno.

         O caminho conduziu-as de novo ao longo do pátio posterior da casa; passaram outra vez por aquele lugar triste, onde alguns homens estavam ocupados em aprontar a Cruz; os operários achavam tanta dificuldade em terminar a cruz, quanto o tribunal em julgar Jesus; foram obrigados a procurar várias vezes outros madeiros, porque os primeiros não serviam ou se fendiam, até que juntaram os diversos madeiros do modo por que Deus o determinara.
Tenho tido várias visões a respeito; vi também Anjos impedirem o trabalho, até que tudo foi feito segundo a vontade de Deus; mas como não me lembro mais claramente disso, deixo de contá-lo.
        

12. Jesus no cárcere


            A cadeia em que estava Jesus, era um lugar pequeno, abobadado, sob o tribunal de Caifás. Vi que ainda existe parte desse lugar. Dos quatro só dois soldados ficavam com Ele; revezavam-se com os outros várias vezes em pouco tempo. Ainda não tinham restituído a roupa a Jesus, que estava vestido apenas daquele manto rasgado, coberto de escarro e com as mãos novamente amarradas.
        
Ao entrar na prisão, Jesus pediu ao Pai Celeste que aceitasse toda a crueldade e escárnio que sofreu e ainda ia sofrer, como sacrifício expiatório igual sofrimento. Também nesse lugar os soldados não deixavam descansar o Senhor. Amarraram-nO a uma coluna baixa, no meio do cárcere e não Lhe permitiam encostar-se, de modo que cambaleava com os pés feridos e inchados pelas quedas e pelas pancadas das cadeias, que Lhe pendiam até os joelhos. Não deixavam de insultar e maltratá-Lo e sempre que os dois estavam cansados, eram revezados por outros, que entrando, começavam a fazer-Lhe novas injúrias.

         Não me é possível contar todas as baixezas que proferiam contra o mais Puro e Santo de todos os Seres; fiquei doente demais e então quase morri de compaixão. Ai! Que vergonha para nós, que por moleza e nojo nem podemos contar ou escutar as crueldades inumeráveis que o Salvador sofreu por nós! Sentimos um terror semelhante ao do assassino a quem mandam pôr a mão nas feridas do assassinado.

Jesus sofria tudo sem abrir a boca: eram os homens, que soltavam a fúria contra seu irmão, seu Redentor, seu Deus. Também sou pecadora, também por minha causa. Ele teve de sofrer. No dia do Juízo há de manifestar-se tudo. Então veremos que parte nos maus tratos do Filho de Deus tivemos, pelos nossos pecados, que continuamente cometemos e pelos quais consentimos e nos unimos as crueldades perpetradas por aquele bando de soldados diabólicos. Ai! Se considerássemos isso, pronunciaríamos muito mais seriamente aquelas palavras contidas nas fórmulas de contrição: “Senhor! Faze-me antes morrer do que vos ofender mais uma vez pelo pecado”.

         Estando em pé no cárcere, Jesus rezava continuamente pelos carrascos. Quando esses ficaram enfim cansados e mais calmos, vi Jesus encostado ao pilar e rodeado de luz. Amanheceu o dia, o dia de sua imensa Paixão e expiação; o dia da nossa redenção espiava timidamente por um orifício no alto da parede, contemplando o nosso Cordeiro Pascal, tão santo e maltratado, que tomara sobre si todos os pecados do mundo. Jesus levantou as mãos amarradas ao novo dia, rezando alto e distinto uma oração tocante ao Pai Celestial, na qual agradeceu a missão desse dia, que almejava os Patriarcas, pelo qual Ele tanto suspirara, desde a sua vinda ao mundo, como disse: “Devo ser batizado com um batismo e quanto desejo que se realize!” Com que fervor agradeceu o Senhor esse dia, em que devia alcançar o alvo de sua vida, nossa salvação, abrir o Céu, vencer o inferno, abrir para os homens a fonte da graça e cumprir a vontade do Pai Celeste!

         Rezei com Ele, mas não sei mais repetir a oração, pois eu estava extenuada de compaixão e de chorar, vendo-Lhe os sofrimentos e ouvindo-O ainda agradecer os horríveis tormentos, que tomou sobre si também por minha causa; eu suplicava sem cessar: “Ah! Dai-me as vossas dores; pertencem-me a mim, pois são a expiação das minhas culpas”.

Amanheceu o dia e Jesus saudou-o com uma ação de graças tão comovente, que fiquei como aniquilada de amor e compaixão e repeti-Lhe as palavras como uma criança. Era um espetáculo indizivelmente triste, afetuoso, santo e imponente, ver Jesus, depois desse tumulto da noite, amarrado a coluna, no meio do estreito cárcere, rodeado de luz, saudando com palavras de agradecimento os primeiros raios do grande dia de seu sacrifício. Ai! Parecia-me que esse raio Lhe entrou no cárcere, como um juiz vem visitar um condenado a morte, para reconciliar-se com ele antes da execução. E Ele ainda Lhe agradeceu tão docemente!

– Os soldados, que de cansaço tinham adormecido um pouco, acordaram surpresos, olhando para Ele, mas não O incomodaram, pois pareciam admirados e assustados.  Jesus ficou nesse cárcere pouco mais de uma hora.


13. Judas aproxima-se da casa do tribunal


         Judas, tomado de desespero, impelido pelo demônio, vagueara pelo vale Hinom, no lado íngreme, ao sul de Jerusalém, lugar onde se jogava o lixo, ossos e cadáveres; enquanto Jesus estava no cárcere, ele veio aproximar-se da casa do tribunal de Caifás. Rodeava-a, espreitando; ainda lhe pendia, preso ao cinto, o prêmio da traição, as moedas de prata encadeadas num molho.

A noite já se tornara silenciosa e o infeliz perguntou aos guardas, que não o conheciam, o que seria feito do Nazareno. Responderam-lhe: “Foi condenado a morte e será crucificado”. Ainda ouviu outros falarem entre si que Jesus fora tratado tão cruelmente e sofrera tudo com paciência e resignação; ao amanhecer seria levado outra vez perante o Supremo Conselho, para ser condenado solenemente. Enquanto o traidor colhia cá e lá essas notícias, para não ser reconhecido, amanheceu o dia e já se via muito movimento dentro e em redor da casa. Então, para não ser visto, retirou-se Judas para os fundos da casa; pois fugia dos homens como Caim e o desespero tomava-lhe cada vez mais posse da alma.

Mas eis o que se lhe apresentou ante os olhos: - Achou-se no lugar onde tinham trabalhado preparando a cruz; lá estavam as várias peças já arrumadas e entre elas, envolvidos nos cobertores, estavam os operários dormindo. Por sobre o monte das Oliveiras cintilava a pálida luz da manhã; parecia tremer de horror, ao ver o instrumento da nossa salvação. Judas, ao deparar essa cena, fugiu, preso de horror: vira o madeiro do suplício, para o qual vendera o Senhor. Escondeu-se, porém, nos arredores, esperando pelo fim do julgamento da madrugada.


14. O julgamento de Jesus na madrugada


         Ao romper do dia, quando já clareara, reuniram-se novamente Anás e Caifás, os anciãos e os escribas, na grande sala do tribunal, para uma sessão perfeitamente legal; pois o julgamento feito durante a noite não era válido e era considerado apenas um depoimento preparatório das testemunhas, porque urgia o tempo, por causa da festa iminente. A maior parte dos membros do conselho passaram o resto da noite na casa de Caifás, seja em aposentos contíguos, seja na própria sala do tribunal, onde foram colocados leitos para esse fim. Muitos, entre eles Nicodemos e José de Arimatéia, chegaram ao romper do dia. Foi uma assembléia numerosa e em cuja ação houve muita precipitação.

         Como os membros do conselho se incitassem uns aos outros a condenar Jesus à morte, levantaram-se Nicodemos, José de Arimatéia e alguns outros contra os inimigos de Jesus, exigindo que a causa fosse adiada até depois da festa, para não provocar tumultos; também porque não se podia basear um julgamento justo sobre as acusações até então proferidas, por serem contraditórios os depoimentos das testemunhas.

Os sumos sacerdotes e seu partido forte irritaram-se com essa oposição e deixaram ver claramente aos adversários que estes também eram suspeitos de favorecerem a doutrina do Galileu e que por isso naturalmente não lhes agradava esse julgamento, porque se dirigia também contra eles mesmos; assim decidiram eliminar do Conselho todos que eram a favor de Jesus; esses, porém, protestaram contra tal processo e, declarando-se alheios a tudo que o Conselho ainda decidisse, retiraram-se da sala do tribunal e dirigiram-se ao Templo. Depois desse fato, nunca mais tomaram parte nas sessões do conselho.

         Caifás, porém, mandou tirar Jesus do cárcere e conduzi-lo, fraco, maltratado e amarrado, como estava, diante do Conselho e preparar tudo de modo que depois do julgamento, pudessem levá-lo imediatamente a Pilatos. Os soldados correram tumultuosamente ao cárcere, lançaram-se com insultos sobre Jesus, desamarraram-no da coluna e tiraram-lhe o manto esfarrapado dos ombros, obrigaram-no, entre golpes, a vestir sua comprida túnica, ainda coberta de toda a imundície e amarrando-o de novo com as cordas pela cintura, conduziram-no para fora do cárcere. Isso foi feito, como tudo, com grande pressa e horrível brutalidade.

Conduziram-no como um pobre animal de sacrifício, entre insultos e golpes, através das fileiras dos soldados, que já estavam reunidos diante da casa, a sala do tribunal. Quando ele, horrivelmente desfigurado pelos maus tratos, pela extenuação e imundície, vestido apenas da túnica toda suja, apareceu diante do Conselho, o nojo aumentou ainda o ódio desses homens. Nesses corações duros de judeus não, havia lugar para a compaixão.

         Caifás, porém, cheio de escárnio e raiva de Jesus, que estava em pé diante dele, tão desfigurado, disse-lhe: “Se és o Cristo do Senhor, o Messias, dize-no-lo.” Jesus levantou o rosto e disse, com santa paciência e solene gravidade: “Se vo-lo disser, não acreditareis e se vos perguntar, não me respondereis, nem me dareis a liberdade; de hoje em diante o Filho do homem sentará a direita do poder de Deus.” Entreolharam-se então e com um riso de desprezo, disseram a Jesus: “És então o Filho de Deus:” Jesus respondeu, com a voz da verdade eterna: “Sim, é como dissestes, eu o sou”. A essa palavra de Nosso Senhor gritaram todos: “Que provas precisamos ainda? Ouvimo-lo nós mesmos da sua própria boca.”

         Levantaram-se todos, cobrindo Jesus de escárnio e insultos, chamando-o de vagabundo, miserável, de obscuro nascimento, que queria ser o Messias e sentar-se a direita de Deus, deram ordem aos soldados de amarrá-lo de novo, pôr-lhe uma cadeia de ferro em redor do pescoço, como aos condenados a morte, para levá-lo assim ao tribunal de Pilatos. Já antes tinham enviado um mensageiro ao Procurador, avisando-lhe que preparasse tudo para julgar um criminoso, porque deviam apressar-se, por causa da festa.

Ainda murmuravam contra o governador romano, por serem obrigados a levar Jesus ao tribunal do mesmo; porque, quando se tratava de coisas estranhas as leis da religião e do Templo, não podiam aplicar a pena de morte; querendo, pois, condenar Jesus com mais aparência de justiça, acusaram-no de crime contra o imperador, mas diante disso competia o julgamento ao governador romano.

Os soldados já estavam alinhados no adro e até fora da casa e muitos inimigos de Jesus já se tinham reunido diante da casa, com o populacho. Os sumos sacerdotes e parte do conselho abriam o séqüito, seguia-se depois o nosso pobre Salvador, entre os soldados e cercado da soldadesca e por fim toda a corja da população. Assim desceram do monte Sião a cidade baixa, onde ficava o palácio de Pilatos. Uma parte dos sacerdotes que assistiram ao Conselho, dirigiram-se ao Templo, onde nesse dia tinham muito serviço a fazer.


15. Desespero de Judas.


         Judas, o traidor, que não se tinha afastado muito, ouviu então o barulho do séqüito, como também as palavras de algumas pessoas, que seguiam de mais, longe; entre outras coisas disseram: “Agora vão levá-lo a Pilatos; o Conselho supremo condenou-o a morte; vai ser crucificado; também não pode mais viver, nesse horrível estado em que O deixaram os maus tratos. Tem uma paciência incrível, não diz nada, apenas que é o Messias e se sentará a direita de Deus; outra coisa não disse e por isso vai morrer na cruz; se não o tivesse dito, não O podiam condenar a morte, mas assim deve morrer. O patife que O vendeu, foi seu discípulo e pouco antes ainda comeu com ele o cordeiro pascal; eu não queria ter parte nesta ação; seja como for, o Galileu pelo menos nunca entregou um amigo a morte por dinheiro.

         “Deveras, esse patife de traidor merece também ser enforcado.” Então o arrependimento tardio, a angústia e o desespero começaram a lutar na alma de Judas. O demônio impeliu-o a correr. O molho das trinta moedas de prata, no cinto, sob o manto, era-lhe como uma espora do inferno; segurou-a com a mão, para que não fizesse tanto barulho, batendo-lhe na perna ao correr. Correu a toda a pressa, não atrás do cortejo, para lançar-se aos pés de Jesus, pedindo perdão ao Salvador misericordioso, não para morrer com Ele, nem para confessar a culpa diante de Deus; mas para se limpar diante dos homens da culpa e desfazer-se do prêmio da traição; correu como um insensato ao Templo, aonde diversos membros do supremo conselho como chefes dos sacerdotes em exercício e alguns dos anciãos se tinham dirigido, depois do julgamento de Jesus.

Olharam-se mutuamente, admirados e com um sorriso desprezível, dirigiram olhares altivos a Judas que, impelido pelo arrependimento do desespero e fora de si, correu para eles; arrancou o feixe das moedas de prata do cinto e, estendendo-lhes a mão direita com o dinheiro, disse, em tom de violenta angústia: “Tomai aqui o vosso dinheiro, com o qual me seduzistes a entregar-vos o Justo; retomai o vosso dinheiro e soltai Jesus; eu rompo o nosso pacto. Pequei gravemente, traindo sangue inocente.”

Mas os sacerdotes mostraram-lhe então todo o seu desprezo; retiraram as mãos do dinheiro que lhes oferecia, como se não quisessem manchar-se com o prêmio da traição, dizendo: “Que nos importa que pecasses? Se julgas ter vendido sangue inocente, é lá contigo; sabemos que o compramos de ti e julgamo-lo réu de morte; é teu dinheiro, não temos nada com isso, etc.”. Disseram-lhe essas palavras no tom que usam os homens que estão muito ocupados e querem livrar-se de um importuno e viraram as costas a Judas. Esse, vendo-se assim tratado, foi tomado de tal raiva e desespero, que ficou como louco; eriçaram-se-lhe os cabelos e rompendo com as duas mãos o molho das moedas de prata, espalhou-as com veemência no templo e fugiu para fora da cidade.

         Vi-o de novo, correndo como louco, no vale de Hinom e o demônio em figura horrível ao seu lado, segredando-lhe ao ouvido, para levá-lo ao desespero, todas as maldições dos profetas sobre esse vale, onde antigamente os judeus sacrificavam os próprios filhos aos deuses. Parecia lhe que todas essas palavras o indicavam com o dedo, dizendo, por exemplo: “Eles sairão para ver os cadáveres daqueles que contra mim pecaram, cujo verme não morre, cujo fogo não se apaga”. Depois lhe soou aos ouvidos: “Caim, onde está Abel, teu Irmão? Que fizeste? O sangue de teu irmão clama a mim; agora, pois, serás maldito sobre a terra, vagabundo e fugitivo”.

Quando chegou a torrente doe Cedron e olhou na direção do monte das Oliveiras, estremeceu e virou os olhos. Então ouviu de novo as palavras: “Amigo para que vieste? Judas, é com um beijo que entregas o Filho do homem:” Então um imenso horror lhe penetrou no fundo da alma, confundiram-se-lhe os sentidos e o inimigo segredou-lhe ao ouvido: “Aqui sobre o Cedron, fugiu também Davi diante de Absalão; Absalão morreu pendurado numa árvore; Davi referia-se também a ti no salmo: “Retribuíram o bem com o mal, ele terá um juiz severo;  Satanás estará a sua direita, todo o tribunal o condenará; os seus dias serão poucos; outro lhe receberá o episcopado; o Senhor recordar-se-á sempre da maldade dos seus pais e dos pecados de sua mãe, porque sem misericórdia perseguiu os pobres e matou os aflitos; ele amava a maldição e esta virá sobre ele; revestia-se da maldição como de uma veste, como água lhe entrou ela nos intestinos, como óleo nos ossos; como uma veste o cobre a maldição, como um cinto que o cinge eternamente”. 

Entre esses terríveis remorsos da consciência, chegara Judas a um lugar deserto, pantanoso, cheio de lixo e imundície, a sudeste de Jerusalém, ao pé do monte dos Escândalos, onde ninguém o podia ver. Da cidade se ouvia ainda mais forte o tumulto e o demônio disse-lhe: “Agora O conduzem a morte; vendeste-o; sabes o que está escrito na lei? “Quem vender uma lama entre seus irmãos, os filhos de Israel, morrerá. Acaba com isto, miserável, acaba com isto!” Então tomou Judas desesperado o cinto e enforcou-se numa árvore que crescia em vários troncos, numa cavidade daquele lugar. Quando se enforcou, rebentou-se-lhe o ventre e os intestinos caíram-lhe sobre a terra.

Fonte: Extraído do Livro "Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus - Anna Catharina Emmerich - Ed. MIR.

VISÕES DE ANNA CATHARINA EMMERICH, Visões Beata Anna Catharina Emmerich