VISÕES DE ANNA CATHARINA EMMERICH, As Visões da Irmã Ana Catarina Emmeric

Beata Anna Catharina Emmerich.

"Jesus fez ainda muitas outras coisas. Se fossem escritas uma por uma, penso que nem o mundo inteiro poderia conter os livros que se deveriam escrever. Jo 21, 25".

As Visões da Irmã Ana Catarina Emmerich que ocorreram em sua vida, descrevem com muitos detalhes os sofrimentos e os passos de JESUS que aconteceram na sua vida, “na dolorosa paixão” e Ressurreição, fiel a Sagrada Escritura. Destacando nesta narrativa a participação da Virgem Maria nos sofrimentos de seu Filho dando-nos uma melhor compreensão do porquê Nossa Senhora é chamada muitas vezes de nossa “Co-redentora”.

Ana Catarina Emmerich (1774 -1824), freira alemã estigmatizada, teve a seguinte visão dos dias de hoje sobre a nossa Igreja Católica:

“Os demolidores levavam grandes pedaços; eram em grande número, sectários e apóstatas. Em seu trabalho seguiam "certas" ordens e "certas" regras; disse mais: "Vi, com horror, que entre eles havia também sacerdotes católicos... Vi o Papa em oração, rodeado de falsos amigos, que, com freqüência, faziam o contrário do que ele ordenava”. - “O mundo se converterá, quando houver respeito na casa de Deus, a Igreja”.
JESUS PERANTE PILATOS E HERODES


1. Jesus é conduzido a Pilatos

           
Conduziram Jesus, entre muitas crueldades, da casa de Caifás à de Pilatos, através do trecho mais populoso da cidade, que nessa ocasião formigava de peregrinos de toda a parte do país, além de uma multidão de estrangeiros. O cortejo dirigiu-se para o norte, descendo do Monte Sião, atravessando uma rua estreita, no fundo do Templo, até o palácio e o tribunal de Pilatos, que estava situado na esquina noroeste do Templo, defronte do grande Fórum ou mercado.

         Caifás e Anás e grande número de membros do Supremo Conselho iam em vestes e festivais, à frente do cortejo; atrás dele, alguns servos traziam rolos de escritura. Seguiam-se-lhes muitos outros escribas e judeus, entre eles as falsas testemunhas e os assanhados fariseus, que foram os que mais se empenharam em acusar ao Senhor. A uma pequena distância, seguia nosso bom Senhor Jesus, conduzido pelos soldados com as cordas, cercado de soldados e dos seis agentes que estavam presentes no ato da prisão. De todos os lados afluiu o populacho, unindo-se com gritos e zombarias ao cortejo; ao longo de todo o caminho esperavam numerosos grupos de gente de povo.

         Jesus estava vestido apenas de sua túnica, toda suja de escarro e imundície. Do pescoço pendia-Lhe até os joelhos a longa corrente, de largos anéis, que, ao andar, Lhe batia dolorosamente de encontro aos joelhos. Tinha as mãos amarradas como na véspera e quatro soldados conduziam-no pelas cordas, que lhe saiam do cinturão. Estava todo desfigurado pelas crueldades, com que o haviam torturado durante a noite; andava cambaleando, cabelo e barba em desalinho, o rosto pálido, inchado e cheio de manchas escuras, causadas pelos socos. Impeliam-no com pancadas e injúrias.

Tinham instigado a muitos do populacho para escarnecê-lo, imitando-lhe a entrada triunfal no Domingo de Ramos. Aclamavam-no com todos os títulos de rei, em tom de mofa(gozação), jogavam-lhe diante dos pés pedras, pedaços de madeira, paus, trapos sujos e zombavam, em versos e motejos, de sua entrada festiva. Os soldados conduziam-no aos arrancos, sobre os obstáculos jogados no caminho; era uma crueldade sem fim.

         Não muito longe da casa de Caifás estava a dolorosa e santa Mãe de Jesus, com Madalena e João, encostados ao canto de um edifício, esperando a aproximação do cortejo. A alma de Maria estava sempre com Jesus, mas quando podia ficar também corporalmente perto dELe, não lhe dava descanso o amor, impelindo-a a seguir-Lhe o caminho e as pegadas. Depois da visita noturna ao tribunal de Caifás, ficara só pouco tempo no Cenáculo, entregue à muda dor; pois, quando Jesus foi tirado do cárcere, de madrugada, para ser apresentado ao tribunal, a Virgem SS. se levantou, cobriu-se com o manto e véu e saindo, disse a João e Madalena: “Sigamos meu Filho à casa de Pilatos, quero vê-lo com meus olhos”. Dando uma volta, chegaram assim em frente do cortejo; a SS. Virgem parara neste lugar e os outros com ela.

A santa Mãe de Jesus sabia bem o que era feito do divino Filho, que Lhe estava sempre ante os olhos da alma; mas com o olhar interior não O podia ver tão desfigurado e maltratado como na realidade estava, pela maldade e crueldade dos homens. De fato via-Lhe sempre os horríveis sofrimentos, mais inteiramente penetrados pela luz da santidade, do amor e da paciência, da vontade que se oferecia vítima pelos homens. Mas nesse momento se lhe apresentou à vista a realidade terrível e ignominiosa. Passaram diante dela os orgulhosos e assanhados inimigos de Jesus, os sumos sacerdotes do verdadeiro Deus, nas vestes santas de gala; passaram com a intenção deicida, representantes da malícia, mentira e maldição.

Os sacerdotes de Deus haviam-se tornado sacerdotes de Satanás. Que aspecto horrível! Depois o tumulto e a alegria dos judeus, todos os perjuros inimigos e acusadores e afinal Jesus, Filho de Deus e do Homem, seu filho, horrivelmente desfigurado e maltratado, amarrado, batido, empurrado, cambaleando mais do que andando, arrastado pelas cordas por cruéis carrascos, no meio de uma nuvem de injúrias e maldições. Aí, se ele não fosse o mais pobrezinho, o mais desamparado, o único que se conservava calmo, a rezar no íntimo do coração, cheio de amor, no meio dessa tempestade do inferno desencadeado, a angustiada Mãe não O teria reconhecido, naquele estado, horrivelmente desfigurado.

Quando se aproximou, vestido da túnica tão suja, a Virgem Santíssima exclamou, soluçando: “Ai de mim! É esse meu filho? Ai! É mesmo meu filho, oh! Jesus, meu Jesus!” O cortejo passou-lhe em frente; o Senhor volveu a cabeça para aquele lado, lançando um olhar comovente à sua Mãe e ela perdeu os sentidos. João e Madalena levaram-na dali, mas logo que voltou a si, fez-se conduzir por João ao palácio de Pilatos.
        
Jesus tinha de suportar, também nesse caminho, que os amigos nos abandonam na desgraça; pois os habitantes de Ofel estavam todos reunidos num certo lugar do caminho e quando viram Jesus tão humilhado e desfigurado, entre os soldados, levado com injúrias e maus tratos, ficaram também abalados na fé; não podiam imaginar o rei, o profeta, o Messias, o Filho de Deus em tão miserável estado. Os fariseus, ao passar, ainda zombaram deles, por causa da afeição que dedicavam a Jesus: “Eis o vosso rei, saudai-O; agora deixais pender a cabeça, agora que Ele vai para a coroação e dentro em pouco subirá ao trono! Acabaram-se-Lhe os milagres, o sumo sacerdote deu-Lhe cabo do feitiço, etc”.

Aquela boa gente, que vira tantas curas milagrosas e recebera tantas graças de Jesus, ficou abalada na fé, pelo horrível espetáculo que lhe apresentavam as pessoas mais santas do país, o sumo sacerdote e o Sinédrio. Os melhores elementos retiraram-se duvidosos, os piores juntaram-se ao cortejo como podiam; pois a passagem em várias ruas estava impedida por guardas dos fariseus, para evitar qualquer tumulto.



2. O palácio de Pilatos e os arredores.


            Ao pé do ângulo noroeste do monte do Templo está situado o palácio do governador romano, Pilatos, em lugar bastante alto; sobe-se uma escada de mármore de muitos degraus, de onde a vista domina uma vasta praça de mercado, cercada de colunas, sob as quais há acomodações para vendedores. Um posto de guarda de quatro entradas, ao oeste, norte, leste e sul, (onde está o palácio de Pilatos,) interrompem essas arcadas do mercado, o qual também é chamado “fórum” e se estende para oeste, além do ângulo noroeste do monte do Templo; desse ponto do fórum pode-se avistar o Monte Sião.

O fórum é um pouco mais elevado de que as ruas circunvizinhas, que sobem um pouco, até chegar às portas de entrada do edifício; em várias partes se encostam as casas das ruas vizinhas ao extremo da coluna que cerca o fórum. O palácio de Pilatos não está contíguo ao fórum, mas é separado desse por um espaçoso pátio. Esse pátio tem como porta, a leste, uma alta arcada, que abre diretamente para a rua que conduz à porta das Ovelhas, pela qual passa quem vai ao monte das Oliveiras; a oeste, tem como porta outra arcada, que abre para oriental da cidade e conduz a Sião, através do bairro de Acra.

         Da escada do palácio de Pilatos se avista, no norte, através do pátio, o fórum, em cuja entrada há um pórtico e alguns assentos de pedra, virados para o palácio. Os sacerdotes judeus, dirigindo-se ao tribunal de Pilatos, não iam além desses assentos, para não se contaminarem; o limite que não deviam ultrapassar, estava marcado por uma linha traçada sobre o pavimento do pátio. Perto da arcada da porta oriental do palácio, já dentro do recinto do fórum, havia um grande posto de guarda, que, confinando ao norte com o fórum e ao sul com a arcada da porta do pretório de Pilatos, formava uma espécie de vestíbulo ou adro entre o foro e o pretório.

Chamava-se pretório a parte do palácio de Pilatos onde ele pronunciava os julgamentos. O posto de guarda era rodeado de colunatas e tinha no centro um pátio sem teto, sob este se achavam os cárceres, nos quais também os dois ladrões estavam presos. Em toda parte se viam lá soldados romanos. Não longe do posto da guarda, perto das arcadas que o cercavam, estava no fórum a coluna de flagelação; havia ainda outras colunas no recinto do mercado: as que estavam mais perto, serviam para infligir castigos corporais, as que estavam mais longe, para amarrar o gado à venda.

Em frente ao posto de guarda, mesmo no fórum, se subia por uma escadaria a um estrado, construído de pedras e bem ladrilhado, em que havia assentos de pedra; parecia-se com um tribunal público; desse lugar, que era chamado Gabata, pronunciava Pilatos as sentenças. A escada de mármore do palácio de Pilatos conduzia a um terraço aberto, do qual ele falava aos acusadores, sentados nos bancos de pedra defronte, próximo à entrada do fórum. Falando alto, podia-se fazer entender com facilidade.

         Atrás do palácio há ainda outro terraço mais elevado, com jardins e um caramanchão. Esses jardins formam a comunicação entre o palácio de Pilatos e a casa da esposa, Cláudia Prócula. Por trás desses edifícios há ainda um fosso, que os separa do monte do Templo; além deste há ainda casas de empregados do Templo.

         Contígua à parte oriental do palácio de Pilatos, está a casa do conselho do tribunal do velho Herodes, em cujo pátio interno foram mortas muitas crianças inocentes. Fizeram depois algumas mudanças; a entrada é agora pelo lado oriental; há também uma entrada para Pilatos, no vestíbulo do palácio.

         Desse lado da cidade partem quatro ruas em direção ao oeste: três conduzem ao palácio de Pilatos e ao Fórum; a quarta, porém, passa ao lado norte do fórum, em direção à porta que conduz a Betsur. Nesta rua, perto da porta, se acha o belo edifício que Lázaro possui em Jerusalém e no qual também Marta tem uma habitação própria.

         Das quatro ruas, a que fica mais perto do Templo, vem da porta das Ovelhas, perto qual, quando se entra, à direita, se acha a piscina das ovelhas; essa fica tão perto do muro da cidade, que nesse se encostam arcadas, que formam uma abóbada sobre as águas. Ela tem um escoadouro, fora do muro, para o vale do Josafá, o que faz com que o solo, por fora da porta, fique encharcado.

Em redor dessa piscina há ainda outros edifícios; é nessa piscina que se lavam os cordeiros pela primeira vez, antes de serem levados ao sacrifício no Templo; mais tarde são lavados outra vez e solenemente, na piscina de Betsaida, ao sul do Templo. Na segunda rua há uma casa com pátio, que pertencia a Sant’ Ana, Mãe de Maria, onde ela e a família moravam e guardavam os animais para os sacrifícios, quando vinham a Jerusalém. Se me lembro bem, foi também nessa casa que foram celebradas as núpcias de José e Maria.

         O Fórum, como já dissemos, fica mais alto do que as ruas circunvizinhas e a água corre pelos regos das ruas, para a piscina das Ovelhas. Na encosta do monte Sião há também um fórum semelhante, diante do antigo castelo de Davi; ali perto, ao sudeste, se acha o Cenáculo e ao norte, o tribunal de Anás e Caifás. O Castelo de Davi é agora um forte abandonado e deserto, com pátios, estábulos e salas vazias, que se alugam como albergaria e caravanas e aos estrangeiros e seus animais de carga. Esse edifício já há muito que está abandonado; já o vi nesse estado na época do nascimento de Cristo; nessa ocasião o séqüito dos Reis Magos, com numerosos animais de carga, foi conduzido para lá, logo ao entrar na cidade.
        

3. Jesus perante Pilatos


         Eram talvez seis horas da manhã, segundo o nosso modo de contar, quando a comitiva dos sumos sacerdotes e dos fariseus, com o nosso Salvador, horrivelmente maltratado, chegou ao palácio de Pilatos.

Entre o mercado e a entrada do tribunal havia assentos em ambos os lados do caminho, onde se divertiam Anás e Caifás, e os conselheiros que os acompanhavam. Jesus foi conduzido alguns passos adiante, até a escada de Pilatos, pelos soldados, que o seguravam pelas cordas. Quando lá chegaram, estava Pilatos deitado sobre uma espécie de leito, na sacada do terraço; tinha ao lado uma mezinha de três pés, em que se viam algumas insígnias de sua dignidade e outros objetos, dos quais não me lembro mais. Cercavam-no oficiais e soldados, que também tinham colocado lá insígnias do poder romano. Os sumos sacerdotes e judeus ficaram afastados do tribunal, porque, aproximando-se mais, se teriam contaminado; segundo a lei havia um certo limite, que não transgrediam.

         Quando Pilatos os viu chegar tão apressados, com tanto tumulto e gritaria, conduzindo Jesus maltratado, levantou-se e falou em tom tão cheio de desprezo, como talvez algum orgulhoso marechal francês falaria aos deputados de uma cidadezinha: “O que vindes fazer tão cedo? Como pusestes este homem em tão mísero estado? Começais cedo a esfolar e matar”. Eles porém, gritaram ao soldados: “Adiante! Levai-O ao tribunal”. Depois se dirigiram a Pilatos: “Escutai as nossas acusações contra este criminoso; não podemos entrar no tribunal, para não nos tornarmos impuros”.

         Depois de exclamarem essas palavras, gritou um homem da estatura alta e forte e figura venerável, no meio do povo apinhado atrás deles no fórum: “É verdade, não podeis entrar neste tribunal, pois está santificado por sangue inocente; só Ele pode entrar, só Ele entre os judeus é puro como os inocentes.”

Assim dizendo, profundamente comovido, desapareceu na multidão. Chamava-se Sadoc; era homem abastado, primo de Obed, que era o marido de Seráfia, também chamada Verônica; dois dos seus filhinhos tinham sido assassinados, com as crianças inocentes, no pátio do tribunal, por ordem de Herodes. Desde então se tinha retirado do mundo e vivia como um Esseno, em continência com a mulher.

Tinha visto Jesus uma vez, em casa de Lázaro e ouvira-o explicar a doutrina; quando viu Jesus tão cruelmente arrastado para a escada de Pilatos, reviveu-lhe no coração a dolorosa lembrança dos filhinhos assassinados naquele lugar e assim deu em alta voz o testemunho da inocência do Senhor. Os acusadores de Jesus estavam com muita pressa e irritados demais pelo modo desdenhoso de Pilatos e a posição humilhante em que se achavam diante dele, para dar atenção à exclamação de Sadoc.

         Os soldados puxaram Jesus pelas cordas, escada acima, até o fundo do terraço, de onde Pilatos estava falando aos acusadores. O procurador romano já ouvira falar muito de Jesus. Quando O viu tão horrivelmente maltratado e desfigurado e contudo conservando uma dignidade inabalável, sentiu cada vez mais nojo e desprezo dos sacerdotes e conselheiros judaicos, que lhe tinham já antes prevenido que trariam Jesus de Nazaré, réu de morte, perante o tribunal, fazendo-lhes sentir que não estava disposto a condená-Lo sem culpa provada.

Disse-lhes, pois, em tom brusco e desdenhoso: “De que crime acusais esse homem?” A que responderam irritados: “Se não O conhecêssemos como malfeitor, não vo-Lo teríamos entregado”. Disse-lhes Pilatos: “Pois tomai e julgai-O segundo a vossa lei”. – “Sabeis, responderam os judeus, que não nos compete o direito absoluto de executar uma sentença de morte”.

         Os inimigos de Jesus estavam cheios de escárnio e raiva; fizeram tudo com precipitação e violência, para acabar com Jesus antes de começar o tempo legal da festa, afim de poderem sacrificar o cordeiro pascal. Mas não sabiam que Ele era o verdadeiro Cordeiro pascal, que eles mesmos conduziam ao tribunal do juiz pagão, servidor de falsos deuses, em cujo limiar não queriam contaminar-se, para poder nesse dia comer o cordeiro pascal.

         Como o governador os intimasse a proferir as acusações, apresentaram três acusações principais contra Jesus e por cada acusação depuseram 10 testemunhas. Formularam as acusações de modo que apresentavam Jesus como réu de crime de lesa-majestade e assim Pilatos devia condená-lo; pois em causas que diziam respeito às leis da religião e do Templo, poderiam eles mesmos decidir.

Primeiro acusaram Jesus de ser sedutor do povo, perturbador do sossego público e agitador; e apresentaram algumas provas, confirmadas por testemunhas. Disseram mais que andava de um lugar para outro, causando grandes ajuntamentos do povo; que violava o Sábado, curando nesse dia. Nisso Pilatos interrompeu-os, num tom sarcástico: “Naturalmente não estais doentes, senão estas curas não vos causariam tanta indignação”. Eles, porém, continuaram a acusar Jesus, dizendo que seduzia o povo com horríveis doutrinas, pois afirmava que teriam a vida eterna os que Lhe comessem a carne e bebessem o sangue.

– Pilatos zangou-se, ao ver a fúria precipitada com que proferiam essa acusação; olhou sorrindo para os seus oficiais e dirigiu aos judeus palavras sarcásticas, como, por exemplo: “Parece mesmo que quereis seguir-Lhe a doutrina e possuir a vida eterna; tenho a impressão de que quereis comer-Lhe a carne e beber-Lhe o sangue”.

         A segunda acusação era que Jesus instigava o povo a não pagar imposto ao imperador. Pilatos interrompeu-os indignado, como homem cujo cargo era velar por essas coisas e disse, em tom convicto de suas próprias informações: “Isto é mentira grossa; devo sabê-lo melhor do que vós”.

– Os judeus, porém, gritaram, apresentando a terceira acusação: Que era mesmo verdade, esse homem, de nascimento baixo, duvidoso e suspeito, tinha formado um partido forte e proferido ameaças contra Jerusalém. Também propagava entre o povo parábolas equivocas, sobre um rei que preparava as núpcias do filho. Certa vez já uma grande multidão de povo, reunido em uma montanha, tinha tentado proclamá-Lo Rei; mas Ele, achando que era ainda cedo, tinha-se escondido. Nos últimos dias tinha ousado mais: preparou uma entrada tumultuosa em Jerusalém e fez o povo gritar: “Hosana ao filho de Davi! Bendito seja o reino que vemos chegar, do nosso pai Davi. Também se fazia prestar honras régias, pois que ensinava que era Cristo, o Unigênito do Senhor, o Messias, o rei prometido dos judeus e assim se fazia chamar”. Também essa acusação foi confirmada pelos depoimentos de dez testemunhas.

         Quando Pilatos ouviu que Jesus se fazia chamar o Cristo, rei dos judeus, tornou-se pensativo. Saindo da sacada, entrou na sala contígua ao tribunal, lançando, ao passar um olhar atento a Jesus e deu ordem à guarda de trazê-Lo à sala do tribunal.

         Pilatos era pagão supersticioso de espírito confuso e inconstante. Conhecia as lendas obscuras de filhos de deuses, que teriam vivido na terra; também não ignorava que os profetas dos judeus, desde muito tempo, haviam predito a vinda de um ungido de Deus, de um Redentor e um libertador e que muitos judeus o estavam esperando. Também sabia que uns reis do Oriente tinham vindo ao velho Herodes, para pedir informações sobre um rei recém-nascido dos judeus, a quem queriam prestar homenagens e que depois disso, muitas crianças foram degoladas, por ordem de Herodes.

Já ouviram falar da promissão da vinda de um Messias, rei dos judeus, mas como pagão que era, não o acreditava, nem podia pensar, como os judeus instruídos e os herodianos daquele tempo, num rei poderoso e conquistador. Tanto mais ridícula lhe parecia por isso a acusação de que esse Jesus que estava diante dele, tão humilhado e desfigurado, pudesse declarar se aquele Messias, aquele rei. Como, porém, os inimigos de Jesus apresentassem isso como crime contra os direitos do imperador, mandou conduzir o Salvador à sua presença, para interrogá-Lo.

         Pilatos olhou para Jesus com assombro e disse-Lhe: “És então o rei dos judeus?” – Jesus respondeu: “Dizeis isto de ti mesmo ou foram outros que t’o disseram de mim?”Pilatos, indignado de ver Jesus julgá-lo tão tolo, que fosse espontaneamente perguntar a um homem tão pobre e miserável se era rei, disse em tom desdenhoso: “Por acaso sou judeu, para me interessar por tais misérias? Teu povo e seus sacerdotes entregaram-Te a mim, para condenar-Te como réu de crime capital; dize-me, pois o que fizeste”?

Respondeu-lhe Jesus, em tom solene: “O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, eu teria servidores, que combateriam por mim, para não me deixar cair nas mãos dos judeus; mas o meu reino não é deste mundo”. Pilatos estremeceu, ao ouvir essas graves palavras de Jesus e disse pensativo. “Então és mesmo rei?” – Jesus respondeu. “É como dizes, sou rei. Nasci e vim a este mundo para dar testemunho da verdade e todo que é da verdade, atende à minha voz”. – Então Pilatos fitou-O e levantando-se, disse: “Verdade? O que é a verdade?” – Faltaram-se ainda outras palavras, das quais não me lembro bem.

         Pilatos saiu outra vez para o terraço; não podia compreender Jesus; mas sabia que não era um rei que quisesse prejudicar ao imperador, nem era pretendente a um reino deste mundo; o imperador, porém, não se importava com um reino do outro mundo. Pilatos gritou, pois, da sacada aos sumos sacerdotes: “Não acho nenhum crime neste homem”.

– os inimigos de Jesus irritaram-se de novo e proferiram uma torrente de acusações contra Ele. O Senhor, porém, permanecia calado e rezava por esses pobres homens e quando Pilatos se Lhe dirigiu, perguntando-Lhe: “Não tens nada a responder a todas essas acusações?” Jesus não, proferiu uma só palavra, de modo que Pilatos, surpreso, Lhe disse: “Vejo bem que empregaram mentiras contra ti” – (em vez de mentiras usou outra expressão, que, porém, esqueci). Os acusadores continuavam, cheios de raiva, a acusá-Lo, dizendo: “O que? Não achais crime nEle? Não é então crime sublevar todo o povo, espalhar sua doutrina em todo o país, da Galiléia até aqui?”

         Quando Pilatos ouvia a palavra Galiléia, refletiu um momento e perguntou: “Esse homem é da Galiléia, súdito de Herodes?” os acusadores responderam: “Sim, seus pais moravam em Nazaré e Ele tem domicilio atual em Cafarnaum”. Então disse Pilatos: “Pois que é galileu e súdito de Herodes, conduzi-O a este; ele está aqui na festa e pode julgá-Lo”. Mandou conduzir Jesus outra vez do tribunal para as mãos dos implacáveis inimigos, enviando também com eles um dos oficiais, para entregar ao tribunal de Herodes o súdito galileu Jesus de Nazaré. Ficou assim satisfeito de poder livrar-se desse modo da obrigação de julgar Jesus pois essa causa lhe era desagradável. Ao mesmo tempo tinha nisso um fim político, queria dar uma prova de atenção a Herodes, que sempre desejara muito ver Jesus; pois estavam em desavença.

         Os inimigos de Jesus, furiosos por lhes haver Pilatos negado a demanda e terem de ir ao tribunal de Herodes, fizeram recair toda a raiva sobre Jesus. Cercaram-nO de novo de soldados e, irritadíssimos, amarraram-Lhe as mãos e com empurrões e pancadas, conduziram-nO a toda pressa, através da multidão que se apinhava no fórum e depois por uma rua, até o palácio de Herodes, que não ficava muito longe. Acompanharam-nos soldados romanos.

         Cláudia Prócula, esposa de Pilatos, mandara-lhe dizer por um cirado, durante as ultimas discussões, que desejava falar-lhe urgentemente. Quando Jesus foi conduzido a Herodes, estava escondida numa galeria alta, olhando com grande angústia e tristeza para o cortejo que passava pelo fórum.


4. Origem de Via Sacra.


            Durante toda a acusação perante Pilatos, a Mãe de Jesus, Madalena e João ficaram no meio do povo, num canto das arcadas do fórum ouvindo com profunda dor a gritaria raivosa dos acusadores. Quando Jesus foi conduzido a Herodes, João voltou com a SS. Virgem e Madalena por todo o caminho da Paixão. Foram até à casa de Caifás e a de Anás, atravessando Ofel, até chegarem a Getsêmani, no monte das Oliveiras e em todos os lugares onde Ele caíra ou onde lhes tinham causado um sofrimento, paravam e em silêncio choravam e sofriam com Ele.

Muitas vezes a SS. Virgem se prostrava no chão, beijando a terra onde Jesus caíra, Madalena torcia as mãos e João, chorando, consolava-as, levantava-as e continuava com elas o caminho. Foi esse o começo da Via Sacra e da contemplação e veneração da Paixão de Jesus, antes mesmo que estivesse terminada.

Foi nessa ocasião que começou, na mais santa flor da humanidade, na Santíssima Virgem Mãe de Deus e do Filho do homem, a devoção da Igreja às dores do Redentor; já naquele momento, quando Jesus ainda trilhava o caminho doloroso da Paixão, a Mãe cheia de graça venerava e regava com lágrimas as pegadas de seu Filho e Deus. Oh! Que compaixão! Com que violência lhe entrou a espada no coração, ferindo-o sem cessar! Ela, cujo bem-aventurado seja O trouxera, que concebera, acariciara e nutrira o Verbo, que era desde o princípio com Deus e era mesmo Deus; ela, que em si Lhe tivera e sentira a vida, antes que os homens, seus irmãos, Lhe recebessem a bênção, a doutrina e a salvação, ela participava de todos os sofrimentos de Jesus, inclusive a sua sede da salvação dos homens, pela dolorosa Paixão e Morte.

Assim a Virgem puríssima e Imaculada inaugurou para a Igreja a Via Sacra, para juntar em todos esses lugares os infinitos merecimentos de Jesus Cristo, como se juntam pedras preciosas ou colhê-los como se colhem flores à beira do caminho e oferecê-los ao pai Celeste, por aqueles que crêem. Tudo que tinha havido e haverá de santo na humanidade, todos que têm almejado a salvação, todos que já uma vez celebraram compadecidos o amor e os sofrimentos do Senhor, fizeram esse caminho com Maria, choraram, rezaram e sacrificaram no coração da Mãe de Jesus, que também é terna Mãe de todos os seus irmãos, os fiéis da Igreja.

         Madalena estava como que alucinada pela dor. Tinha um imenso e santo amor a Jesus; mas quando queria verter a alma aos pés do Salvador, como Lhe vertera o óleo de nardo sobre a cabeça, abria-se um horrível abismo entre ela e o Bem-Amado. O arrependimento dos pecados, como a gratidão pelo perdão, lhe eram sem limites e quando o seu amor queria fazer subir a ação de graças aos pés do Divino Mestre, como uma nuvem de incenso, eis que O via maltratado e conduzido à morte, por causa dos pecados dela, que Ele tomara sobre si.

Então se lhe horrorizava a alma, diante de tão grande culpa, pela qual Jesus tinha de sofrer tão horrivelmente; precipitava-se-lhe no abismo do arrependimento, que não podia nem exaurir, nem encher; e de novo se elevava, cheia de amor e saudade, para seu Mestre e Senhor e via-O sofrendo indizíveis crueldades. Assim tinha a alma cruelmente dilacerada, vacilava entre o amor e o arrependimento, entre a sua gratidão e a dolorosa contemplação da ingratidão do povo para com o Redentor; todos esses sentimentos se lhe manifestavam no rosto, nas palavras e nos movimentos.

         João sofria em seu amor; conduzia a Mãe de seu Santo Mestre e Deus, que também o amava e sofria por ele; conduzia-a, pela primeira vez, nas pegadas da Via Sacra da Igreja e lia-lhe na alma o futuro.


5. Pilatos e a Esposa

           
            Enquanto Jesus era conduzido a Herodes e lá o cobriam de insultos e escárnio, vi Pilatos ir ao encontro da esposa, Cláudia Prócula. Encontraram-se numa pequena casa, construída sobre um terraço do jardim, atrás do palácio de Pilatos. Cláudia estava muito incomodada e comovida. Era mulher alta e esbelta, mas pálida; vestia um véu, que lhe pendia sobre as costas, contudo viam-se-lhe os cabelos, dispostos em redor da cabeça e alguns adornos; tinha também brincos, um colar e sobre o peito um broche, em forma de agrafe, que lhe prendia o longo vestido de pregas. Conversou muito, tempo com Pilatos, conjurando-o por tudo que lhe era santo a não fazer mal a Jesus, o Profeta, o mais Santo dos santos e contou-lhe parte das visões maravilhosas que vira, a respeito de Jesus, durante a noite.

         Enquanto ela falava, vi-lhe grande parte das visões que tivera; mas não me lembro mais exatamente da ordem em que se seguiram. Recordo-me todavia, que viu todos os momentos principais da vida de Jesus; viu a Anunciação de N. Senhora, o Nascimento de Jesus, a adoração dos pastores e dos Reis Magos, as profecias de Simeão e Ana, a fuga para o Egito, a matança dos inocentes, a tentação no deserto, etc. Viu-lhe quadros da vida pública, virtudes e milagres; viu-O sempre rodeado de luz e teve visões horríveis do ódio e da maldade de seus inimigos; viu-Lhe os inúmeros sofrimentos, o amor e a paciência sem limite, a santidade e as dores de sua santa Mãe.

Para mais fácil compreensão, eram esses quadros ilustrados com figuras simbólicas e pela diferença de luz e sombra. Essas visões lhe causaram indizível angústia e tristeza; pois todas essas coisas lhe eram novas, penetraram-lhe no coração pela verdade intuitiva; parte das visões mostraram-lhe acontecimentos que se deram na vizinhança de sua casa, como por exemplo a matança das  crianças inocentes e a profecia de Simeão no Templo. De minha própria experiência sei bem quanto um coração compassivo sofre em tais visões; pois compreende melhor os sentimentos de outrem quem já os sentiu em si mesmo.

         Ela tinha sofrido desse modo durante a noite e visto muitas coisas maravilhosas e compreendido muitas verdades, umas mais, outras menos claramente, quando foi acordada pelo barulho da multidão, que conduzia a Jesus. Quando mais tarde olhou para fora, viu o Senhor, objeto de todas as coisas maravilhosas que vira durante a noite, desfigurado e cruelmente maltratado pelos inimigos, que o conduziam através do fórum, ao palácio de Herodes. Esse espetáculo, após as visões da noite, encheu-lhe o coração de angústia e terror. Mandou imediatamente chamar Pilatos, a quem contou, com medo e pavor, muitas das coisas que vira, porque não tinha compreendido tudo ou não o sabia exprimir em palavras; mas pedia e suplicava e estreitava-se-lhe de um modo tocante.

         Pilatos ficou muito admirado e até sobressaltado pelo que a esposa lhe contou, comparava-o com tudo que ouvia cá e lá sobre Jesus, com a raiva dos judeus, com o silêncio do Mestre e as firmes e maravilhosas respostas que lhe dera às perguntas; ficou perturbado e inquieto; deixou-se, porém, em pouco vencer pelas insistências da mulher e disse-lhe: “Já declarei que não acho crime nesse homem; não O condenarei, já percebi toda a maldade dos judeus”. Ainda falou sobre as declarações que Jesus tinha feito contra si mesmo e até tranqüilizou a mulher, dando-lhe um penhor, como garantia da promessa. Não sei mais se foi uma jóia ou um anel ou sinete que lhe deu por penhor. Assim se separaram.

         Conheci Pilatos como homem confuso, ambicioso, indeciso, orgulhoso e vil ao mesmo tempo; sem verdadeiro temor de Deus, não recuava diante das ações mais vergonhosas, se delas esperava qualquer lucro e ao mesmo tempo era um vil covarde, que se entregava a toda espécie de ridículas superstições, procurando a proteção dos deuses, quando se achava em situação difícil. Vi-o também nessa ocasião muito perturbado; estava continuamente diante dos deuses, aos quais oferecia incenso, numa sala secreta da casa e dos quais pedia sinais.

Também esperava outros sinais supersticiosos, por exemplo, observava como comiam as galinhas; mas todas essas coisas pareciam tão horríveis, tenebrosas e infernais, que recuei tremendo de horror e não as posso mais contar exatamente. Tinha ele as idéias confusas e o demônio sugeria-lhe ora uma, ora outra coisa. Primeiro opinou que devia soltar Jesus, por ser inocente; depois pensou que os deuses se vingariam, se salvasse Jesus; pois havia estranhos sinais e declarações, que provavam ser o Nazareno um semideus, e sendo assim, podia fazer muito mal aos deuses.

“Talvez”, disse consigo, “seja uma espécie de Deus dos judeus, que deve reinar sobre tudo; alguns reis dos adoradores dos astros, vindos do oriente, já vieram uma vez a Jerusalém, procurar tal rei; talvez este pudesse elevar-Se acima dos deuses e do imperador e eu teria uma grande responsabilidade, se Ele não morresse. Talvez a sua morte seja o triunfo dos meus deuses”. Mas depois se recordou dos sonhos maravilhosos da mulher, que antes nunca vira Jesus e isso lançou um grande peso na balança oscilante de Pilatos, em favor da libertação do Mestre e decidiu-se de fato nesse sentido.

Queria ser justo; mas não o podia, porque tinha perguntado: “O que é a verdade?” e não esperava a resposta: “Jesus Nazareno, o rei dos judeus, é a verdade”. Havia tanta confusão nos pensamentos do Procurador romano, que eu não o podia compreender e ele mesmo também não sabia o que queria; senão certamente não teria consultado as galinhas.

         Juntava-se no entanto cada vez mais no mercado e na vizinhança da rua pela qual Jesus fora conduzido a Herodes. Havia, porém, uma certa ordem, pois o povo reunia-se em certos grupos, segundo as cidades ou regiões donde vieram à festa. Os fariseus mais encarniçados de todas as regiões onde Jesus tinha ensinado, estavam com os patrícios, esforçando-se por excitar contra Jesus o povo instável e perplexo. Os soldados romanos estavam reunidos em grande número no posto de guarda, diante do palácio de Pilatos, outros tinham ocupado todos os pontos importantes da cidade.


6. Jesus perante Herodes


            O palácio do Tetrarca Herodes estava situado ao norte do fórum, na cidade nova, não muito longe do palácio de Pilatos. Um destacamento de soldados romanos acompanhou o cortejo, a maior parte oriunda da região entre a Itália e a Suíça. Os inimigos de Jesus, furiosos por ter de fazer tantas caminhadas, não cessavam de ultrajá-lo e de fazê-lo empurrar e arrastar pelos soldados. O mensageiro de Pilatos chegou antes do cortejo ao palácio de Herodes, que assim, já avisado, O esperava sentado numa espécie de trono, sobre almofadas, numa vasta sala; rodeavam-no muitos cortesãos e soldados.

Os Sumos Sacerdotes entraram pelo peristilo e colocaram-se de ambos os lados; Jesus ficou na entrada. Herodes sentiu-se muito lisonjeado, por Pilatos tê-Lo publicamente declarado competente, diante dos Sumos Sacerdotes, de julgar um galileu. Mostrou-se muito importante e vaidoso; também se regozijava de ver diante de si, em situação tão humilhante, o famoso Mestre, que sempre tinha desdenhado apresentar-Se-lhe.

João falara dEle com tanta solenidade e ouvira os Herodianos e outros espiões e mexeriqueiros falarem de Jesus, que tinha muita curiosidade de vê-Lo; comprazia-se em sujeitá-Lo, diante dos palacianos e dos Sumos Sacerdotes, a um prolixo interrogatório, pelo qual queria mostrar a ambas as partes quanto estava bem informado. Pilatos tinha-lhe também comunicado que não achara crime em Jesus; e o hipócrita tomou-o como aviso, para tratar os acusadores com certa frieza, o que ainda mais lhes aumentou a raiva.

         Proferiam acusações tumultuosamente, logo ao entrarem; Herodes, porém, olhou com curiosidade para Jesus e quando O viu tão desfigurado e maltratado, o cabelo desgrenhado, o rosto dilacerado e coberto de sangue e imundícies, a túnica toda suja de lama, esse rei mole e libertino sentiu dó e nojo. Exclamou um nome de Deus que me soou como “Jeovah”, virou o rosto, com um gesto de nojo e disse aos sacerdotes: “Levai-O daqui, limpai-O. Como podeis trazer à minha presença um homem tão sujo e maltratado?” Os soldados levaram então Jesus ao átrio; trouxeram água numa bacia e um esfregão e limparam-nO cruelmente; pois o rosto estava ferido e passavam o esfregão com brutalidade.

         Herodes repreendeu os sacerdotes, por causa dessa crueldade e no modo de tratá-los parecia imitar Pilatos; pois também lhe disse: “Vê-se bem que Ele caiu nas mãos de carniceiros; começastes a imolação hoje antes da hora”. Os sumos sacerdotes, porém, insistiam tumultuosamente nas acusações e incriminações. Quando reconduziram Jesus à sala, quis Herodes fingir benevolência para com Ele e mandou trazer-Lhe um cálice de vinho, por estar muito fraco; Jesus, porém, sacudiu a cabeça e não aceitou o vinho.

         Herodes dirigiu-se então com muita verbosidade e afabilidade, proferindo tudo que sabia dEle. A princípio Lhe fez várias perguntas e manifestou o desejo de vê-Lo fazer um milagre; como porém, Jesus não respondesse palavra alguma e permanecesse com os olhos baixos, ficou Herodes irritado e envergonhado diante dos presentes, mas não quis mostrá-lo e continuou a fazer-Lhe uma torrente de perguntas.

Primeiro procurou lisonjeá-lo: “Sinto muito te ver tão gravemente acusado; tenho ouvido falar muito de ti; sabes que me ofendeste em Tirza, resgatando sem minha licença, vários presos que eu mandara prender lá? Mas fizeste-O talvez com boa intenção. Agora me foste entregue pelo governador romano para te julgar; o que respondes a todas aquelas acusações? Ficas calado?

– Têm-me falado muito de tua sabedoria, dos teus discursos e da tua doutrina; eu desejaria ouvir-Te refutar os teus acusadores. – Que dizeis? – É verdade que és o rei dos judeus? – És o Filho de Deus? – Quem, és? – Ouvi dizer que tens feito grandes milagres, prova-o diante de mim, fazendo um milagre. Depende de mim libertar–Te. – É verdade que deste a vista a cegos de nascença? Ressuscitaste dos mortos Lázaro? Saciaste vários milhares de homens com poucos pães? Porque não respondes? – Conjuro-te a operar um dos teus milagres. – Seria muito em teu favor”.

Como, porém, Jesus continuasse calado, Herodes falou com volubilidade ainda maior: “Quem és? – Como chegaste a isto? – Quem Te deu o poder? – Porque não tens mais poder agora? És acaso aquele de cujo nascimento se contam coisas tão estranhas? No tempo de meu pai vieram alguns reis do oriente e perguntaram-lhe por um recém-nascido rei dos judeus, a quem queriam prestar homenagem; dizem que eras Tu aquele menino; é verdade? – Escapaste da matança em que pereceram tantas crianças? – Como foi isto? – Porque não se ouviu falar de Ti tanto tempo? – Ou apenas dizem isto a teu respeito  para fazer-Te rei? – Justifica-Te. – Que espécie de rei és Tu? Em verdade, não vejo em Ti nada de real. – Como me dizem, fizeram-Te uma entrada triunfal no Templo. Que significa isto? Fala! Como é que tudo acabou assim?”

         A toda essa torrente de palavras não obteve resposta alguma de Jesus. Foi-me explicando agora e, já há mais tempo, que Jesus não lhe respondeu, porque Herodes foi excomungado, tanto pelas relações adúlteras com Herodíades, como também pelo assassínio de João Batista. Anás e Caifás aproveitaram a indignação que lhe causou o silêncio de Jesus, para de novo proferir as acusações. Entre outras coisas afirmaram que Jesus tinha chamado Herodes de raposa e que, já desde muito tempo, tinha trabalhado para a queda de toda a família de Herodes; que queria fundar uma nova religião e comera o cordeiro pascal no dia anterior. Essa acusação já a tinham produzido perante Caifás, por traição de Judas, mas fora refutado por alguns amigos de Jesus, os quais para esse fim leram alguns trechos de rolos da Escritura.

         Herodes, ainda que irritado pelo silêncio de Jesus, não se esqueceu dos seus interesses políticos. Não quis condenar Jesus; pois Este lhe inspirava um terror secreto e já era torturado de remorsos, por causa da morte de João Batista; também odiava os sumos sacerdotes, porque não tinham querido desculpar-lhe o adultério e o haviam excluído dos sacrifícios pelo mesmo motivo. Mas o motivo principal era que não queria condenar aquele a quem Pilatos declarara inocente; convinha-lhe aos interesses políticos aplaudir a opinião de Pilatos, diante dos príncipes dos sacerdotes. A Jesus, porém, cobriu de desprezo e insultos; disse aos criados e guardas, dos quais contava uns duzentos no palácio. “Levai para fora este tolo e prestai a este rei ridículo as honras que se Lhe devem; pois é mais um doido do que um criminoso”.

         Conduziram então o Salvador a um vasto pátio, onde o cobriram de escárnio e indizíveis crueldades. Esse pátio estendia-se por entre as alas do palácio e Herodes, de pé num terraço, assistiu por algum tempo a esse espetáculo cruel. Anás e Caifás, porém, andavam sempre atrás dele e procuravam por todos os meios movê-lo a condenar Jesus; mas Herodes disse-lhes, de modo que os romanos da escolta o ouvissem: “Seria um crime de minha parte, se O condenasse”. Queria certamente dizer: “Seria um crime contra a sentença de Pilatos, que teve a gentileza de mandá-Lo a mim”.

         Vendo que não conseguiam nada de Herodes, os sumos sacerdotes e os inimigos de Jesus enviaram alguns dos seus, com dinheiro, a Acra, bairro da cidade onde se achavam nessa ocasião muitos fariseus, aos quais mandaram dizer que fossem, com os respectivos partidários, às vizinhanças do palácio de Pilatos; fizeram também distribuir entre o povo muito dinheiro, para levá-lo a pedir tumultuosamente a morte de Jesus. Outros emissários deviam ameaçar o povo com castigos de Deus, se não conseguisse a morte desse blasfemador sacrílego; também mandaram espalhar entre o povo que se Jesus não morresse, se ligaria aos romanos e seria esse o reino de que sempre falara; e então seriam aniquilados os judeus.

Em outra parte espalharam o boato de que Herodes condenara Jesus, mas esperava que o povo manifestasse sua vontade; receava-se a resistência dos adeptos do Nazareno e se esse fosse solto, seria perturbada toda a festa; pois então Ele, com seus partidários e os romanos, tirariam vingança. Desse modo fizeram espalhar os boatos mais contraditórios e assustadores, para irritar e sublevar o povo, enquanto outros emissários deram dinheiro aos soldados de Herodes, afim de que maltratassem gravemente a Jesus, mesmo até O fazer morrer, pois antes desejavam que morresse do que Pilatos O soltasse.

         Enquanto os fariseus estavam ocupados nesses negócios e intrigas, sofreu Nosso Senhor o escárnio e a brutalidade mais ignominiosa da soldadesca ímpia e grosseira, à qual Herodes O tinha entregue, para ser maltratado, como tolo que não lhe quisera responder. Empurraram-nO para o pátio e um deles trouxe um comprido saco branco, que achara no quarto do porteiro e em que, havia tempos, viera uma remessa de algodão. Cortaram com as espadas um buraco no fundo do saco e meteram-nO por entre grandes gargalhadas, sobre a cabeça de Jesus; outro trouxe um farrapo vermelho e pôs-Lhe em redor do pescoço, como um colar; o saco caia-Lhe sobre os pés.

         Então se inclinavam diante dEle, empurravam-nO e entre ditos insultantes, cuspiam e batiam-Lhe no rosto, porque não tinha respondido ao rei e prestavam-Lhe outras mil homenagens escarnecedoras; atirava-Lhe lama, davam-Lhe arrancos, como para fazê-lo dançar; depois o fizeram cair com o longo manto derrisório e arrastaram-nO por um esgoto que passava no pátio, ao longo dos edifícios, de modo que a cabeça sagrada do Salvador batia de encontro ás colunas e pedras angulares; depois O levaram e começaram as crueldades de novo. – havia lá cerca de duzentos soldados e servidores do palácio de Herodes, gente de todas as regiões e cada um dos mais perversos queria fazer honra a seu país e distinguir-se diante de Herodes, inventando um novo ultraje para Jesus.

Faziam tudo precipitadamente, empurrando-se uns aos outros, entre escárnios; os inimigos de Jesus tinham pago dinheiro a alguns deles, que no tumulto Lhe deram diversas pauladas na santa cabeça. Jesus fitava-os com os olhos suplicantes, suspirando e gemendo de dor; mas zombavam dele, imitando-Lhe os gemidos; a cada nova brutalidade rompiam em gargalhadas e insultos, não haviam nenhum que Lhe mostrasse piedade. Tinha a cabeça toda banhada em sangue e vi-O cair três vezes, sob as pauladas, mas vi também uma aparição como de Anjos, que, chorando, desceram sobre Ele e lhe ungiram a cabeça. Foi-me revelado que sem esse auxílio de Deus, as pauladas teriam sido mortais. Os filisteus, que fizeram o cego Sansão correr na Pista de Gaza, até cair morto de cansaço, não foram tão violentos e cruéis como esses perversos.

         Urgia o tempo para os Sumos Sacerdotes, porque em pouco deviam ir ao Templo e quando receberam aviso de que todas as suas ordens tinham sido cumpridas, insistiram mais uma vez com Herodes, pedindo-lhe que condenasse Jesus. Mas o tetrarca tinha em vista apenas suas relações com Pilatos e mandou reconduzir-lhe Jesus, vestido do manto derrisório.

Fonte: Extraído do Livro "Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus - Anna Catharina Emmerich - Ed. MIR.

JESUS É AÇOITADO,

COROADO DE ESPINHOS E CONDENADO À MORTE


1. Jesus reconduzido a Pilatos

         Cada vez mais enfurecidos, tornaram os príncipes dos sacerdotes e os inimigos de Jesus a trazê-Lo de novo de Herodes a Pilatos. Estavam envergonhados de não lhe ter conseguido a condenação e ter de voltar novamente para aquele que já O tinha declarado inocente. Por isso tomaram na volta outro caminho, cerca de duas vezes mais longo, para mostrá-Lo naquela humilhação em outra parte da cidade, para poder maltratá-Lo tanto mais pelo caminho e dar tempo aos agentes de concitarem o povo a agir conforme as maquinações tramadas.

          O caminho pela qual conduziram Jesus era mais áspero e desigual; acompanharam-nO, estimulando os soldados sem cessar a maltratá-Lo. A veste derrisória, o longo saco, impedia o Senhor de andar; arrastava-se na lama, várias vezes caiu, embaraçando-se nele e era levantado cada vez com arrancos nas cordas, pauladas na cabeça e pontapés. Sofreu nesse caminho indizíveis insultos e crueldades, tanto daqueles que o conduziam, como também do povo; mas Ele rezava, pedindo a Deus que não O deixasse morrer, para poder terminar a sua Paixão e nossa Redenção.

         Eram oito horas e um quarto da manhã, quando o sinistro cortejo chegou, vindo do outro lado, (provavelmente de leste) ao palácio de Pilatos, atravessando o fórum. A multidão do povo era enorme; estavam reunidos em grupos, conforme as regiões e cidades de procedência e os fariseus corriam entre o povo, excitando-o. Pilatos, lembrando-se ainda da revolta dos galileus descontentes, na Páscoa do ano anterior, tinha concentrado cerca de mil homens, que ocuparam o pretório ou posto de guarda, as entradas do fórum e do palácio.

         A SS. Virgem, sua irmã mais velha, Maria Helí, a filha desta, Maria Cleofé, Madalena e algumas outras mulheres piedosas, cerca de vinte, assistiram aos acontecimentos que se seguiram; ficaram sob as arcadas, de onde podiam ouvir tudo e aproximavam-se furtivamente de vez em quando. João estava a princípio também presente.

         Jesus, coberto com a veste derrisória, foi conduzido através da multidão, entre os escárnios do populacho; pois a escória e os mais perversos de entre o povo foram colocados na frente dos fariseus, que lhes davam o exemplo, ultrajando Jesus. Um palaciano de Herodes já tinha chegado antes, com a mensagem para Pilatos, de que Herodes lhe ficava muito grato pela atenção, que, porém, no afamado sábio galileu encontrara apenas um bobo mudo; que O tinha tratado como tal e mandara reconduzí-Lo novamente a Pilatos. Este ficou satisfeito de saber que Herodes estava de acordo e não condenara Jesus; mandou levar-lhe de novo cumprimentos e assim se tornaram amigos, de inimigos que eram, desde o desabamento do aqueduto.

         Jesus foi novamente conduzido pela rua ao palácio de Pilatos; empurraram-nO, para subir a escada que conduzia ao terraço; mas pelos brutais arrancos dos soldados, pisou na longa veste e caiu com tal violência sobre os degraus de mármore, que os salpicou de sangue sagrado. Os inimigos do Mestre, que tinham de novo ocupado os assentos, ao lado do fórum e o populacho romperam na gargalhada por essa queda de Jesus e os soldados empurraram-nO a pontapés pelos últimos degraus.

         Pilatos estava recostado no seu assento, que se parecia com um pequeno leito de repouso; a pequena mesa estava ao lado; como dantes, estavam também agora com ele alguns oficiais e outros homens, com rolos de pergaminho. Ele se dirigiu ao terraço, do qual falava ao povo e disse aos acusadores de Jesus: “Vós me entregastes este homem como agitador do povo à revolta; interroguei-O diante de vós e não O achei réu do crime de que O acusais. Também Herodes não lhe achou crime algum; pois vos mandei Herodes e vejo que não foi condenado à morte. Portanto mandá-Lo-ei açoitar e depois soltar”.
Levantou-se, porém, entre os fariseus violenta murmuração e clamor e a agitação e distribuição de dinheiro entre o povo tomou mais intensidade. Pilatos tratou-os com muito desprezo e expressões satíricas; entre outras, disse essa: “Não vereis por acaso correr bastante sangue inocente ainda hoje, na hora dos sacrifícios?”


2. Jesus é posposto a Barrabás.


            Ora, era nesse tempo que o povo vinha, antes da festa da Páscoa, pedir, segundo um antigo costume, a liberdade de um preso. Os fariseus tinham enviado, justamente por isso, alguns agentes ao bairro de Acra, a oeste de Templo, para dar dinheiro ao povo, instigando-o a que não pedisse a libertação, mas a crucificação de Jesus. Pilatos, porém, esperava que o povo pedisse a liberdade de Jesus e resolveu dar-lhes a escolher entre Jesus e um terrível facínora, que já fora condenado à morte, para que quase não tivessem que escolher. Esse celerado chamava-se Barrabás e era amaldiçoado por todo o povo; tinha cometido assassinatos durante uma agitação; vi que também tinha feito muitos outros crimes.

         Houve um movimento entre o povo no fórum; um grupo avançou, com os oradores à frente; esses levantaram a voz e bradaram a Pilatos, que estava no terraço: “Pilatos, fazei-nos o que sempre fizestes, por ocasião da festa! “Pilatos, que só então estava esperando por isso, respondeu-lhes: “Tendes o costume de receber de festas a liberdade de um preso. A quem quereis que solte, Barrabás ou Jesus, o rei dos judeus, que dizem ser o Ungido do Senhor?”

         Pilatos, todo indeciso, chamava-O “rei dos judeus”, já como romano orgulhoso, que os desprezava, por terem um rei tão miserável, que tivessem de escolher entre Ele e um assassino; já com uma certa convicção de que Jesus pudesse ser de fato esse rei maravilhoso dos judeus, o Messias prometido; mas também esse pressentimento da verdade era em parte fingimento e mencionou esse título do Senhor porque bem sentia que a inveja era o motivo principal do ódio dos príncipes dos sacerdotes contra Jesus, a quem considerava inocente.

         Após a pergunta de Pilatos, houve uma curta hesitação e deliberação entre o povo e só poucas vozes gritaram precipitadamente: “Barrabás!” Pilatos, porém, foi chamado por um criado da mulher; retirou-se um instante do terraço e o criado mostrou-lhe o penhor que ele dera da manhã à esposa e disse-lhe: “Cláudia Prócula manda lembrar-vos vossa promessa”. Os fariseus, no entanto, e os príncipes dos sacerdotes estavam em grande agitação; aproximaram-se do povo, ameaçando e instigando-o; mas não precisavam de tanto esforço.

         Maria, Madalena, João e as outras piedosas mulheres estavam no canto de uma arcada, tremendo e chorando. Embora a Virgem Santíssima soubesse que não havia salvação para os homens senão pela morte de Jesus, entretanto, como Mãe, estava cheia de angústia e desejo de salvar a vida do Filho santíssimo; e assim como Jesus, embora escolhesse de livre vontade tornar-se homem e morrer na cruz, todavia sofria, como qualquer homem, todas as dores e os martírios de um inocente horrivelmente maltratado e conduzido à morte, assim também Maria padecia todos os tormentos e angústias de uma mãe vendo o filho maltratado por um povo ingrato. Ela e as companheiras tremiam, entregues, ora à angustia, ora à esperança.

João afastava-se de vez em quando, a pouca distância, para ver se podia colher uma boa noticia. Maria implorava a Deus para que não se cometesse esse imenso crime; rezava como Jesus no monte das Oliveiras: “Se é possível, afaste este cálice”. Assim esperava ainda a mãe no seu amor; pois enquanto as instigações e ameaças dos fariseus ao povo passaram de boca em boca, chegara também a ela o boato de que Pilatos queria soltar Jesus. Viam-se, não longe, grupos de gente de Cafarnaum, entre os quais muitos que Jesus curara e ensinara; fizeram como se não O conhecessem e olhavam furtivamente para João e as infelizes mulheres, envoltas nos véus; mas Maria pensava, como todos, que esses, pelo menos, rejeitariam Barrabás, para salvar o Benfeitor e Salvador. Mas tal não se deu.

         Pilatos, lembrando-se, à vista do penhor, da súplica da esposa, devolveu-lho, como sinal de que cumpria a promessa. Voltou ao terraço e sentou-se ao lado da mezinha; os sumos sacerdotes também tornaram a ocupar os respectivos assentos e Pilatos exclamou de novo: “Qual dos dois quereis que eu solte?” – Então se levantou um grito geral por todo o fórum e de todos os lados: “Não queremos Este; entregai-nos Barrabás!” Pilatos gritou mais uma vez: “Que farei então de Jesus, que é chamado o Cristo, o rei dos judeus?” – “Crucificai-O, Crucificai-O!” Pilatos perguntou então pela terceira vez: “Mas que mal tem feito? Eu pelo menos não Lhe acho crime de morte. Mas vou mandá-Lo açoitar e depois soltar”. Mas o grito “Crucificai-O, Crucificai-O!” rugia pelo fórum, como uma tempestade infernal e os sumos sacerdotes e fariseus agitavam-se e gritavam como loucos de raiva. Então Pilatos lhes entregou Barrabás, o malfeitor e condenou Jesus à flagelação.


3. A flagelação de Jesus


         Pilatos, juiz covarde e indeciso, pronunciara várias vezes a palavra: “Não lhe acho crime algum; por isso vou mandá-Lo açoitar e depois soltar”. A gritaria dos judeus, porém, continuava; “Crucificai-O, Crucificai-O!” Contudo queria Pilatos tentar ainda fazer sua vontade e deu ordem de açoitar Jesus à maneira dos romanos. Então entraram os soldados e, batendo e empurrando a Jesus brutalmente, com os curtos bastões, conduziram nosso pobre Salvador, já tão maltratado e ultrajado, através da multidão tumultuosa e furiosa, para o fórum, até a coluna de flagelação, que ficava em frente de uma das arcadas do mercado, ao norte do palácio de Pilatos e não longe do posto da guarda.

         Os carrascos, jogando os açoites, varas e cordas no chão, ao pé da coluna, vieram ao encontro de Jesus. Eram seis homens de cor parda, mais baixos do que Jesus, de cabelo crespo e eriçado, barba muito rala e curta; vestiam apenas um pano ao redor da cintura, sandálias rotas e uma peça de couro ou outra fazenda ordinária, que lhes cobria peito e costas como um escapulário, aberto dos lados; tinham os braços nus. Eram criminosos comuns, das regiões do Egito, que trabalhavam como escravos ou degredados na construção de canais e edifícios públicos; escolhiam-se os mais ignóbeis e perversos, para tais serviços de carrascos no pretório.

         Amarrados à mesma coluna, alguns pobres condenados tinham sido açoitados até à morte, por esses homens horríveis, cujo aspecto tinha algo de bruto e diabólico e pareciam meio embriagados. Bateram em Nosso Senhor com os punhos e com cordas, apesar de não lhes opor resistência alguma, arrastaram-nO com brutalidade furiosa, até à coluna da flagelação. É uma coluna isolada, que não serve para sustentar o edifício. É de tamanho tal, que um homem alto, com o braço estendido, lhe pode tocar a extremidade superior, arredondada e munida de uma argola de ferro; na parte de traz, no meio da altura, há também argolas ou ganchos. É impossível descrever a brutalidade bárbara com que esses cães danados maltrataram a Jesus, nesse curto caminho; tiraram-Lhe o manto derrisório de Herodes e quase jogaram nosso Salvador por terra.

         Jesus trepidava e tremia diante da coluna. Ele mesmo se apressou a despir a roupa, com as mãos inchadas e ensangüentadas pelas cordas, enquanto os carrascos O empurravam e puxavam. Orava de um modo comovente e volveu a cabeça por um momento para a Mãe SS. que, dilacerada de dor, estava com as mulheres piedosas num canto das arcadas do mercado, não longe do lugar de flagelação e disse, voltando-se para a coluna, porque O obrigaram a despir-se também do pano que lhe cingia os rins: “Desvia os teus olhos de mim”. Não sei se pronunciou essas palavras ou as disse só interiormente, mas percebi que Maria as entendeu; pois a vi nesse momento desviar o rosto e cair sem sentidos nos braços das santas mulheres veladas, que a rodeavam.

         Então abraçou Jesus a coluna e os algozes ataram-Lhe as mãos levantadas à argola de cima, dando-Lhe arrancos brutais e praguejando horrivelmente todo o tempo; puxaram-Lhe assim todo o corpo para cima, de modo que os pés, amarrados em baixo à coluna, quase não tocavam no chão. O Santo dos Santos estava cruelmente estendido sobre a coluna dos malfeitores, em ignominiosa nudez e indizível angústia e dois dos homens furiosos começaram, com crueldade sanguinária, a flagelar-Lhe todo o santo corpo, da cabeça aos pés. Os primeiros açoites ou varas que usaram, pareciam ser de maneira branca e dura; talvez fossem também feixes de tendões secos de boi ou tiras duras de couro branco.

         Nosso Senhor e Salvador, o Filho de Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, contraia-se e torcia-se, como um verme, sob os açoites dos criminosos; ouviam-se-Lhe os gemidos e lamentos, doces e claros, como uma prece afetuosa no meio de dores dilacerantes, entre os sibilar e estalar dos açoites dos carrascos. De vez em quando ressoava a gritaria do povo e dos fariseus, como uma nuvem escura de tempestade, abafando essas queixas dolorosas e santas, cheias de bênçãos. As turbas gritavam: “Deve morrer! Crucificai-O!”, pois Pilatos estava ainda a discutir com o povo.

Quando queria fazer-se ouvir, no meio do tumulto da multidão, fazia soar primeiro um toque de trombeta, para impor silêncio. Nesses momentos se ouviam novamente os açoites, os gemidos de Jesus, o praguejar dos carrascos e os balidos dos cordeiros pascais, que eram lavados na piscina das Ovelhas, ao lado da porta das Ovelhas, a leste do fórum. Depois de lavados, eram levados, com a boca amarrada, até o caminho do Templo, para não se sujarem mais, depois eram conduzidos para o lado de fora, a oeste, onde ainda eram submetidos a uma ablução cerimonial. Esses balidos desamparados dos cordeiros tinham algo de indescritivelmente comovente; eram as únicas vozes que se uniam aos gemidos do Salvador.

         A multidão dos judeus mantinha-se afastada do lugar da flagelação, numa distância, talvez, da largura de uma rua. Soldados romanos estavam postos em diferentes lugares, especialmente pelo lado do posto de guarda; perto da coluna de flagelação havia grupos de populacho, que iam e vinham silenciosos ou zombando; vi alguns que se sentiram comovidos; era como se os tocasse um raio de luz saindo de Jesus.

         Vi também meninos indignos que, ao lado do pretório, preparavam novas varas e outros que iam buscar ramos de espinheiro. Alguns soldados dos Príncipes dos sacerdotes tinham travado relações com os carrascos e deram-lhes dinheiro; trouxeram-lhes também um grande cântaro, cheio de uma bebida vermelha, grossa, da qual beberam até ficar embriagados e enraivecidos. Ao cabo de um quarto da hora deixaram os dois carrascos de açoitar Jesus; formam juntar-se a dois outros e beberam com eles. O corpo de Jesus estava todo coberto de contusões vermelhas, pardas e roxas e o sangue sagrado corria-Lhe por terra; agitava-se em movimentos convulsivos. De todos os lados se ouviam insultos e motejos.

         Durante a noite tinha feito muito frio. Desde a madrugada até essa hora, não clareara o céu e, com grande espanto do povo, caíram algumas curtas chuvas de pedra. Pelo meio dia clareou e apareceu o sol.

         O segundo par de carrascos caiu então com novo furor sobre Jesus; tinham outra espécie de açoites; eram como varas de espinheiro, com nós e esporões. Os violentos golpes rasgaram todas as pisaduras do santo corpo de Jesus; o sangue regou o chão, em redor da coluna e salpicou os braços dos carrascos. Jesus gemia, rezava, torcia-se de dor.

         Passaram então pelo fórum muitos estrangeiros, montados em camelos; olharam assustados e entristecidos, quando o povo lhes disse o que se estava passando. Eram viajantes, dos quais uns tinham recebido o batismo e outros o sermão da montanha. O tumulto e os gritos continuavam no entanto, diante da casa de Pilatos.

         Os dois seguintes carrascos bateram em Jesus com flagelos: eram curtas correntes ou correias, fixas num cabo, cuja extremidades estavam munidas de ganchos de ferro, que arrancavam, a cada golpe, pedaços de pele e carne das costas. Oh! Quem pode descrever o aspecto horrível e doloroso deste suplicio?

         Mas a crueldade dos carrascos ainda não estava satisfeita; desligaram Jesus e amarraram-nO de novo, mas com as costas viradas para a coluna. Como, porém, estivesse tão enfraquecido, que não podia manter-se em pé, passaram-Lhe cordas finas sobre o peito e sob os braços e debaixo dos joelho, amarrando-O assim toda à coluna; também Lhe ataram as mãos atrás da coluna, a meia altura. Todo o corpo sagrado contraia-se-Lhe dolorosamente, as chagas e o sangue cobriam-Lhe a nudez. Como cães raivosos, caíram-Lhe os carrascos em cima, com os açoites; um tinha uma vara mais delgada na mão esquerda, com que Lhe batia no rosto. O corpo de Nosso Senhor formava uma só chaga, não havia mais lugar são. Ele olhava para os carrascos, com os olhos cheios de sangue, que suplicavam misericórdia, mas redobravam os golpes furiosos e Jesus gemia, cada vez mais fracamente: “Ai”

         A horrível flagelação durara cerca de três quartos de hora, quando um estrangeiro, homem do povo, parente do cego Ctesifon, curado por Jesus, se aproximou precipitadamente da coluna, pelo lado de traz e, com uma faca em forma de foice na mão, gritou indignado: “Parai! Não flageleis este homem inocente até morrer!” Os carrascos, meio embriagados, pararam espantados e o homem cortou rapidamente, como de um único golpe, as cordas de Jesus, que todos estavam seguras num prego de ferro, atrás da coluna; depois o estrangeiro fugiu e perdeu-se na multidão. Jesus, porém, caiu desfalecido, ao pé da coluna, sobre a terra empapada de sangue. Os carrascos deixaram-nO lá e foram beber, depois de chamar os auxiliares do carrasco, que estavam no posto de guarda, ocupados em trançar a coroa de espinhos.

         Jesus torcia-se ainda de dor, ao pé da coluna, as chagas a sangrar; nesse momento vi passar perto algumas raparigas libertinas, com as vestes imprudentemente arregaçadas; estavam de mãos dadas e pararam diante de Jesus, olhando-O com repugnância melindrosa; com isso sentiu Jesus ainda mais as feridas e levantou para elas o rosto ensangüentado, com um olhar suplicante; então se afastaram, continuando o caminho e os carrascos e soldados dirigiram-lhes, entre gargalhadas, palavras indecentes.

         Vi varias vezes, durante a flagelação, aparecerem Anjos tristes em redor de Jesus; ouvi a oração que o Senhor dirigia ao Pai eterno, no meio dos tormentos e insultos, oferecendo-se para expiação dos pecados dos homens. Mas nesse momento, quando jazia, banhado em sangue, ao pé da coluna, vi um anjo, que lhe restituía as forças; parecia dar-Lhe um alimento luminoso.

         Então se aproximaram novamente os carrascos e dando-Lhe pontapés, mandaram-nO levantar-se, dizendo que ainda não tinham acabado com o rei; querendo ainda bater-Lhe, arrastou-se Jesus pelo chão, para alcançar a faixa de pano e cobrir a nudez; mas os perversos celerados empurravam-na com os pés para lá e para cá, rindo-se de ver Jesus em sangrenta nudez arrastar-se penosamente, como um verme esmagado, para alcançar o pano e cobrir o corpo dilacerado.

Depois O impeliram, a pontapés e pauladas, a levantar-se sobre as pernas vacilantes; não Lhe deram tempo de vestir a túnica, mas lançaram-lha sobre os ombros e Jesus enxugou nela o sangue do rosto, enquanto O conduziram apressadamente ao corpo da guarda, dando uma volta. Podiam tê-Lo levado por um caminho mais curto, porque as arcadas e edifícios em redor do fórum eram abertos, de modo que se podia enxergar o corredor sob o qual jaziam presos os dois ladrões e Barrabás; mas passaram com Jesus diante dos sumos sacerdotes, que gritavam: “Levai-O à morte! Levai-o à morte!” e viraram a cabeça com nojo. Conduziram-nO para o pátio interior do corpo da guarda. Quando Jesus entrou, não havia lá soldados, mas escravos, soldados e marotos, a escória do povo.

         Vendo que o povo estava tão agitado, Pilatos mandara vir reforço da cidadela Antônia. Essas forças cercavam em boa ordem o corpo da guarda; podiam falar, rir e insultar a Jesus, mas não sair das fileiras. Pilatos queria com eles manter o povo em respeito. Podia bem haver lá mil homens.


4. Maria Santíssima durante a flagelação.


            Vi a SS. Virgem, durante a flagelação do Redentor, em continuo êxtase; via e sofria na alma e com indizível amor e tormento, tudo quanto sofria o Divino Filho. Muitas vezes lhe saíram fracos gemidos da boca; os olhos estavam inflamados de tanto chorar. Jazia velada nos braços da irmã mais velha, Maria Helí, que já era muito idosa e se parecia muito com a mãe, Sant’ Ana. Maria, filha de Cléofas e de Maria Helí, estava também presente e segurava sempre o braço se sua mãe. As santas amigas de Maria e Jesus, todas veladas e envolvidas em mantos, rodeavam a SS. Virgem, tremendo de medo e dor, como se esperassem sua própria sentença de morte. Maria vestia uma longa veste azul e sobre essa, um comprido manto branco de lã e um véu branco-amarelo. Madalena estava desnorteada e desolada de dor e lamentação; tinha o cabelo em desalinho, sob o véu.

         Quando Jesus, depois da flagelação, caíra ao pé da coluna, mandara Cláudia Prócula, a mulher de Pilatos, um fardo de grandes panos à Mãe de Deus. Não sei mais se julgava que Jesus ficaria livre e a Mãe do Senhor lhe devia tratar as feridas com esses panos ou se a pagã compadecida mandou os panos para o fim o qual SS. Virgem os empregou.

         Maria, voltando a si, viu passar o Divino Filho dilacerado, conduzido pelos soldados; Ele enxugou o sangue dos olhos com a túnica, para fitar a SS. Virgem, que Lhe estendeu as mãos, num transporte de dor e Lhe seguiu com a vista as pegadas sangrentas. Logo depois vi a SS. Virgem e Madalena, quando o povo se dirigia mais para o outro lado, aproximarem-se do lugar da flagelação. Cercadas e ocultas pelas outras santas mulheres e outra gente boa, que se aproximara, prostraram-se por terra, ao pé da coluna da flagelação e apanharam com os panos todo o sangue de Jesus, por toda a parte onde encontraram algum vestígio.
         Não vi nessa hora João, junto das santas mulheres, que eram cerca de vinte. O filho de Simeão, o de Obed e o de Verônica, como também Aram e Temeni, os sobrinhos de José de Arimatéia, estavam todos ocupados no Templo, cheios de tristeza e angústia.

         Foi pelas nove horas da manhã que acabou a flagelação.

         Vi hoje as faces da SS. Virgem pálidas e mortiças, o nariz delgado e comprido, os olhos quase cor de sangue, de tantas lágrimas que derramou; não é possível descrever a impressão que faz a figura de Maria, na sua simplicidade e graça natural. Já desde ontem e durante toda a noite, tem ela vagueado, cheia de angústia e amor, pelo vale de Josafá e pelas ruas de Jerusalém e através do povo e contudo não se lhe vê nenhuma desordem nas vestes; cada prega do vestido da SS. Virgem respira santidade; tudo nela é simples e digno, puro e inocente.

Os movimentos, ao olhar em redor de si, são nobres e as pregas do véu, quando vira um pouco a cabeça, são de uma singular beleza e simplicidade. Nos movimentos não se lhe nota agitação e mesmo na mais dilacerante dor, todo o porte se lhe conserva simples e calmo. Tem o manto umedecido pelo orvalho da noite e por inúmeras lágrimas, mas em tudo mais está limpo e bem arrumado. É inefavelmente bela e de uma beleza toda sobrenatural; pois toda sua beleza é também pureza, simplicidade, dignidade e santidade.

         Madalena, porém, tem um aspecto inteiramente diferente. É mais alta e mais gorda e chama mais a atenção pelas formas e os movimentos; mas toda a beleza lhe foi devastada pelas paixões, pelo arrependimento e excessiva dor; quase sem limite de sua dor. Tem as vestes molhadas e sujas de lama, em desarranjo e rasgadas; o longo cabelo cai-lhe solto e em desalinho, sob o véu molhado e amarrotado. Está toda desfigurada e agitada; não pensa senão em sua dor, e parece quase uma alienada. Há muita gente aqui de Magdala e arredores, que a viu dantes, na vida tão suntuosa e depois tão pecaminosa e em seguida tanto tempo retirada do mundo e agora a apontam com o dedo e a insultam, ao ver-lhe a estranha figura; há também gente baixa de Magdala que, ao passar por ela, lhe atira lama, mas Madalena não o nota, tão absorta está na sua dor.


5. Jesus é coroado de espinhos e escarnecido pelos soldados.


         Durante a flagelação falou Pilatos ainda várias vezes ao povo, que uma vez até gritou: “Ele deve morrer, ainda que todos nós também pereçamos”. Quando Jesus foi conduzindo ao corpo da guarda, para ser coroado de espinhos, ainda gritaram: “Morra! Morra!” pois chegavam cada vez novas turbas de judeus, que pelos emissários dos sumos sacerdotes eram incitados a gritar assim.

         Houve depois uma curta pausa. Pilatos deu ordens aos soldados. Os sumos sacerdotes e os conselheiros, que estavam sentados em bancos, de ambos os lados da rua, à sombra das árvores ou sob lonas estendidas, diante do terraço de Pilatos, mandarem os criados trazer alimentos e bebida. Vi também Pilatos de novo perturbado pela superstição; retirou-se sozinho, para oferecer incenso aos deuses e por certos sinais descobrir-lhes a vontade.

         Vi que depois da flagelação a SS. Virgem e as amigas, tendo enxugado o sangue de Jesus, se afastaram do fórum. Vi-as com os panos ensangüentados, numa pequena casa encostada a um muro; não era longe do fórum; não me lembro mais de quem era. Não me recordo de ter visto João durante a flagelação.

         Jesus foi coroado de espinhos e escarnecido no pátio interior do corpo da guarda, construído sobre os cárceres, ao lado do fórum. Esse pátio era cercado de colunas e todas as entradas tinham sido abertas. Havia ali cerca de cinqüenta miseráveis patifes, sequazes dos soldados, servos dos carcereiros, soldados e auxiliares dos carrascos, escravos e os criminosos que flagelaram Nosso Senhor; esses todos tomaram parte ativa nas crueldades praticadas em Jesus. No começo o povo tentou entrar, mas pouco depois cercaram mil soldados romanos o edifício. Permaneciam nas fileiras, mas com as zombarias e risos provocavam ainda o cruel exibicionismo dos carrascos para redobrarem as torturas de Jesus, animando-os com as risadas, como o aplauso anima os atores no palco.

         Rolaram para o meio do pátio o pedestal de uma velha coluna, no qual havia um buraco, que talvez tivesse servido para nele ajustar a coluna. Nesse pedestal colocaram um escabelo redondo e baixo, que por detrás tinha uma espécie de cabo, para o manejar; por maldade cobriram o escabelo de pedregulho agudo e cacos de louça.

         Arrancaram de novo toda a roupa do corpo ferido de Jesus e impuseram-Lhe um manto de soldado, curto, vermelho, velho e já roto, que nem lhe chegava até os joelhos. Pendiam dele ainda alguns restos de borlas amarelas; jazia num canto do quarto dos verdugos, que costumavam impô-lo aos que tinham açoitado, seja para enxugar-lhes o sangue, seja para escarnecê-los. Arrastaram a Jesus para a coluna e empurraram-nO brutalmente, com o corpo despido e ferido, sobre o escabelo coberto de pedras e cacos.

Depois lhe puseram a coroa de espinhos na cabeça. Essa tinha dois palmos de altura, era muito espessa e trançada com arte; em cima tinha uma borda um pouco saliente. Puseram-Lha em redor da fronte, como uma ligadura e ataram-na atrás com muita força, de modo que formavam uma coroa ou um chapéu. Era artisticamente trançada de três varas de espinheiro, da grossura de um dedo, que tinham crescido alto, através dos espessos arbustos. Os espinhos, pela maior parte, foram propositalmente virados para dentro. Pertenciam a três diferentes espécies de espinheiros, que tinham alguma semelhança com a nossa cambroeira, o abrunheiro e espinheiro branco. Em cima tinham acrescentado uma borda, trançada de um espinheiro semelhante à nossa sarça silvestre e pela qual pegavam e puxavam brutalmente a coroa. Vi o lugar onde os meninos foram buscar esses espinhos.

         Puseram-Lhe também na mão um grosso caniço, com um tufo na ponta. Fizeram tudo isso com solenidade derrisória, como se O coroassem de fato rei. Tiravam-lhe o caniço da mão e batiam com tanta força a coroa, que os olhos de Nosso Senhor se enchiam de sangue. Curvavam os joelhos diante dEle, mostravam-Lhe a língua, batiam e cuspiam-Lhe no rosto, gritando: “Salve, rei dos judeus!” Depois, entre gargalhadas, fizeram-nO cair no chão, junto com o escabelo e tornaram a colocá-Lo sobre ele aos empurrões.

         Não posso relatar todas as torturas e ultrajes que os carrascos inventaram, para escarnecer o pobre Salvador. Ai! Jesus sofreu horrível sede; pois em conseqüência das feridas, causadas pela desumana flagelação, estava com febre e tremia; a pele e os músculos dos lados estavam dilacerados o deixavam entrever as costelas em vários lugares; a língua contraíra-se-Lhe espasmodicamente; somente o sangue sagrado que lhe corria da fronte, compadecia-se da boca ardente, que se abria ansiosa. Mas aqueles homens horríveis tomaram-Lhe a boca divina por alvo dos nojentos escarros. Jesus foi assim maltratado por cerca de meia hora e a tropa, cujas fileiras cercavam o pretório, aplaudia com gritos e gargalhadas.


6. Ecce Homo


         Reconduziram então Jesus ao palácio de Pilatos, a coroa de espinhos sobre a cabeça, o caniço nas mãos amarradas, coberto do manto vermelho. Jesus estava desfigurado, pelos sangue que Lhe enchia os olhos e Lhe escorria na boca e sobre a barba. O corpo, coberto de pisaduras e feridas, parecia-se-Lhe com um pano ensopado de sangue. Andava curvado e cambaleando; o manto era tão curto, que Jesus precisava curvar-se, para cobrir a nudez, porque Lhe tinham arrancado toda a roupa, no ato da coroação de espinhos.

         Quando o pobre Jesus chegou ao primeiro degrau da escada, diante de Pilatos, até esse homem cruel estremeceu de horror e compaixão. Apoiou-se a um dos oficiais e como o povo e os sacerdotes ainda gritassem e insultassem, exclamou: “Se o demônio dos judeus é tão cruel, então não deve ser bom morar com ele no inferno”. Quando Jesus foi puxado penosamente, escada acima e conduzido ao fundo, Pilatos saiu para a sacada; foi dado um toque de trombeta, para chamar a atenção do povo, a que Pilatos queria falar. Disse, pois, aos príncipes dos sacerdotes e a todos os presentes: “Escutai, vou mandá-Lo conduzir mais uma vez para diante de vós, para que conheçais que não Lhe achei culpa alguma”.

         Jesus foi então conduzido pelos soldados à sacada, ao lado de Pilatos, de modo que todo o povo reunido no fórum podia vê-Lo. Era um aspecto terrível, pungente, que primeiro causou no povo horror e penoso silêncio. O Filho de Deus ensangüentado dirigiu os olhos cheios de sangue, sob a coroa de espinhos, para o povo e Pilatos, que, ao lado, indicando-O com a mão, gritou aos judeus: “Eis aqui o Homem!”

         Enquanto Jesus, com o corpo dilacerado, coberto do manto vermelho derrisório, abaixando a cabeça traspassada de espinhos e inundada de sangue, segurando nas mãos atadas o cetro de caniço, curvado para cobrir a nudez com as mãos, aniquilado pela dor e tristeza, mas ainda respirando infinito amor e mansidão, estava diante do palácio de Pilatos, como um aspecto sangrento, exposto aos gritos furiosos dos sacerdotes e do povo, passaram pelo fórum grupos de forasteiros, homens e mulheres, com as vestes arregaçadas, em direção à piscina das Ovelhas, para ajudar a lavar os cordeiros da Páscoa, cujos balidos tristes se misturavam com os clamores sanguinários da multidão, como para dar testemunho em favor da Verdade, que se calava. Somente o verdadeiro cordeiro pascal de Deus, o revelado, mas não conhecido mistério desse santo dia, cumpriu a profecia e curvou-se em silêncio sobre o matadouro.

            Os sumos sacerdotes e os membros do tribunal ficaram cheios de raiva pelo aspecto de Jesus, espelho horrível de sua consciência e gritaram: “Morra! Crucificai-O!” Pilatos, porém, exclamou: “Ainda não vos basta? Ele foi tão maltratado, que não terá mais desejo de ser rei”. Eles, porém, se tornaram ainda mais furiosos, gritando como dementes e todo o povo repetia: “Deve morrer. Crucificai-O!” Então mandou Pilatos dar outro toque de trombeta e disse: “Pois tomai-O e crucificai-O vós, porque não Lhe acho culpa”. Responderam-lhe alguns dos príncipes dos sacerdotes: “Temos uma lei e segundo essa lei Ele deve morrer, porque declarou ser o Filho de Deus!” Pilatos replicou: “Pois se tendes tais leis, segundo as quais este homem deve morrer, eu não queria ser judeu”.

         Mas o dito dos judeus: “Ele se declarou Filho de Deus” inquietou Pilatos e suscitou-lhe de novo o pavor supersticioso; mandou, pois, conduzir Jesus a um lugar separado, onde Lhe perguntou: “Donde és?” Jesus, porém, não lhe respondeu. Disse-lhe então Pilatos: “Não me respondes? Por ventura não sabes que tenho o poder de crucificar-Te ou de soltar-Te?” E Jesus respondeu: “Não terias poder sobre mim, se não te fosse dado do Céu; por isso comete pecado mais grave aquele que me entregou em tuas mãos”.

         Cláudia Prócula, que estava muito angustiada pela hesitação do marido, mandou novamente um mensageiro a Pilatos mostrar-lhe o penhor e lembrar-lhe a promessa; ele, porém, lhe mandou uma resposta muito confusa e supersticiosa, da qual me lembro apenas que se referia aos deuses.

         Quando os príncipes dos sacerdotes e os fariseus tiveram conhecimento da intervenção da mulher de Pilatos em favor de Jesus, mandaram espalhar entre o povo: “Os partidários de Jesus subornaram a mulher de Pilatos; se Ele ficar livre, unir-se-à aos romanos e nós todos pereceremos”.

         Pilatos, na indecisão, estava como embriagado; a razão vacilava-lhe de um lado para outro. Disse uma vez aos inimigos de Jesus que não Lhe achava culpa. Mas vendo que esses, com mais vigor ainda, exigiram a morte de Jesus e inquieto pelos seus próprios pensamentos confusos, como pelos sonhos da mulher e as palavras significativas de Jesus, queria ouvir mais uma resposta do Senhor, que o pudesse tirar dessa situação penosa.

Voltou portanto à sala do tribunal, onde estava Jesus e ficou a sós com Ele. Com um olhar perscrutador e quase medroso, fitou o Salvador desfigurado e ensangüentado, para quem não podia olhar sem horror e pensou comigo: “Será possível que seja um Deus?” e de repente se Lhe dirigiu com energia, conjurando-O a dizer-lhe se era um deus e não um homem, se era rei, até onde se Lhe estendia o reino, de que espécie era a sua divindade. Se lho dissesse, dar-Lhe-ia a liberdade.

– O que Jesus respondeu, posso dizê-lo só pelo sentido, não com as mesmas palavras. O Senhor falou-lhe com terrível severidade. Fez-lhe ver em que sentido era rei e qual o seu reino; mostrou-lhe o que era a verdade, pois disse-lhe a verdade. Nosso Senhor revelou-lhe, com toda a franqueza, os abomináveis crimes que Pilatos ocultava na consciência; predisse-lhe o futuro, a miséria no exílio, o fim horroroso e que Ele um dia viria julgá-lo com toda a justiça.

         Pilatos, meio assustado, meio irritado pelas palavras de Jesus, saiu para a sacada e exclamou mais uma vez que queria soltar Jesus. Então gritaram: “Se o soltares, não és amigo de César; pois quem se declara rei, é inimigo de César”. Outros gritaram que o acusariam perante o imperador por perturbar-lhes a festa; que devia terminar a causa, porque eram obrigados, sob graves penas, a estar no Templo às dez horas.

– O grito: “Morra! Crucificai-O!” levantou-se novamente de todos os lados; subiram até sobre os tetos planos das casas em redor do fórum e gritavam dali.

Então viu Pilatos que contra essa fúria não conseguiria nada; os gritos e o tumulto tinham algo de terrível e toda a multidão diante do palácio estava em tal estado de agitação, que era para recear uma rebelião. Pilatos mandou trazer água; o criado derramou-lhe água da bacia sobre as mãos, à vista de todo o povo e Pilatos gritou do pretório à multidão: “Sou inocente do sangue deste justo; vós tendes que responder pela sua morte”. Então se levantou um grito horrível, unânime, do povo reunido, no meio do qual havia gente de todos os lugares da Palestina: “Que o seu sangue caia sobre nós e nossos, filhos!”


7. Reflexão sobre estas visões


            Todas as vezes que, nas meditações da dolorosa Paixão de Jesus Cristo, ouço esse grito espantoso dos judeus: “Que o seu sangue caia sobre nós e nossos filhos”, o efeito dessa solene maldição me é revelado e tornado sensível, em quadros maravilhosos e terríveis. Vejo acima do povo, que grita, um céu escuro, coberto de nuvens cor de sangue, das quais saem flagelos e espadas de fogo. Vejo como se os raios dessa maldição atravessassem todos até os ossos e neles também os filhos. Vejo o povo como envolvido em trevas e o grito sair-lhes das bocas como um fogo tenebroso e maligno, unir-se por cima das cabeças e cair de novo sobre eles, entrando mais profundo em alguns, pairando sobre outros. Esses últimos eram aqueles que depois da morte de Jesus se converteram. O número destes não era, porém, pequeno; pois vejo Jesus e Maria, durante todos esses terríveis sofrimentos rezarem sempre pela salvação dos carrascos e todos esses horríveis tormentos não lhes causaram nenhum ressentimento.

Durante toda a Paixão, no meio das mais cruéis torturas dos insultos mais insolentes e ignominiosos, no meio da fúria sanguinária dos inimigos e dos servos destes, à vista da ingratidão e do abandono de muitos fiéis, que Lhe causaram o mais amargo sofrimento físico e moral, vejo Jesus sempre rezando, amando os inimigos, orando pela sua conversão, até o último suspiro; mas vejo que por essa paciência e esse amor ainda mais se inflama a fúria e raiva dos cruéis inimigos; enfurecem-se porque toda a sua brutalidade e crueldade não conseguem arrancar-Lhe da boca uma palavra de protesto ou de queixa, que possa desculpar-lhes a maldade. Hoje, que na festa da Páscoa matam o cordeiro pascal, não sabem que matam o Cordeiro de Deus.

         Quando, durante tais visões, dirijo os meus pensamentos para o coração do povo e dos juízes e para as santas almas de Jesus e Maria, tudo que neles se passa me é mostrado em figuras, que as pessoas naquele tempo não viram mas sentiram o que representam. Vejo então inúmeras figuras diabólicas, cada uma diferente, conforme o vício que representa, em terrível ação entre a multidão; vejo-as correr, instigar a raiva, causar confusão dos espíritos, entrar na boca das pessoas; vejo as sair da multidão, reunir-se em grande número e atiçar a raiva do povo contra Jesus, mas à vista do amor e da paciência do Mestre tremem e desaparecem do novo entre o povo.

Toda essa atividade tem algo de desesperado, confuso, contraditório; é um movimento confuso e insensato. Acima e em redor de Jesus e Maria e do pequeno número de santos vejo também se moverem muitos Anjos, cujas figuras e vestimentas variam, conforme as respectivas funções e ação; representam consolação, oração, unção, conforto por comida e bebida e outras obras de misericórdia.

         De modo semelhante vejo freqüentemente vozes consoladoras ou ameaçadoras saírem, como palavras de diferentes cores e luzes, da boca de tais aparições; e se são mensagens, vejo-lhas nas mãos, em forma de tiras escritas. Outras vezes, quando preciso ser instruída a esse respeito, vejo os movimentos d’alma e as paixões dos corações, o sofrimento e o amor, enfim, tudo que é sentimento; vejo-os passar através do peito e de todo o corpo dos homens, em movimentos de diferentes cores, em variações de luz e sombra, de diversas formas, direções e mudanças de forma e cor, de lentidão e rapidez; assim compreendo tudo, mas é impossível exprimi-lo em palavras; pois é um número infinito de coisas e ao mesmo tempo me sinto tão abatida pela dor e tristeza por meus pecados e os de todo o mundo e tão dilacerada pela dolorosa Paixão de Jesus, que até não compreendo como ainda possa juntar o pouco que estou contando.

Muitas coisas, especialmente aparições e ações de demônios e Anjos, contadas por outras pessoas, que tiveram visões da Paixão de Nosso Senhor, são fragmentos de tais intuições de movimentos interiores, invisíveis no momento em que se realizaram outrora, as quais variam, segundo o estado d’alma das pessoas videntes e são entremeadas  nas narrações. Por isso há tantas contradições, porque esquecem algumas coisas, saltam outras e só uma parte é que contam.

Tudo que há de mau no mundo, contribuiu para atormentar Jesus. Tudo que é amor, nEle sofreu. Como Cordeiro de Deus, tomou sobre si os pecados do mundo: - que infinidade de coisas, tanto abomináveis como também santas, se podem ver e contar. Se, portanto, as visões e contemplações de muitas pessoas piedosas não concordam em tudo, é porque não tiveram o mesmo grau de graça para ver, contar e fazer-se compreender.


8. Jesus condenado à more na Cruz


            Pilatos, que não procurava a verdade, mas apenas uma saída para a dificuldade, estava mais indeciso que nunca. A consciência dizia-lhe: “Jesus é inocente”. A esposa mandara dizer-lhe: “Jesus é santo”. A superstição dizia-lhe: “É um inimigo de teus deuses”. A covardia dizia-lhe: “É um deus e vingar-se-à”.

Interroga mais uma vez a Jesus, em tom inquieto e solene e Jesus lhe fala dos seus mais ocultos crimes, prediz-lhe um futuro e uma morte miseráveis e que um dia virá, sentado sobre as nuvens do céu, pronunciar sobre ele um juízo justo, o que deita na falsa balança da justiça de Pilatos um novo peso contra a intenção de soltar Jesus. Ficou furioso por se ver em toda a nudez de sua ignomínia interior diante de Jesus, a quem não podia compreender; sentiu-se indignado daquele que mandara açoitar e que podia mandar crucificar, lhe predizer um fim miserável; dessa boca, quem nunca acusada de mentira,  que não proferia uma só palavra em sua própria defesa, ousar, em ocasião extremamente arriscada, citá-lo perante seu justo tribunal, naquele dia futuro.

Tudo isso lhe ofendeu profundamente o orgulho; mas como não havia sentimento dominante nesse homem miserável e indeciso, ficou cheio de medo diante da ameaça do Senhor e fez a última tentativa de libertar Jesus. Ouvindo, porém, a ameaça dos judeus de acusá-lo perante o imperador, se soltasse Jesus, foi dominado por outro pavor covarde: o medo do imperador terrestre venceu o receio do rei cujo reino não era deste inundo. O celerado covarde e irresoluto pensava consigo: “Se Ele morrer, morrerá também com Ele o que sabe de mim e o que me predisse”.

À ameaça dos judeus de acusá-lo perante o imperador, decidiu-se Pilatos a fazer-lhes a vontade, contrariamente à promessa que fizera à esposa, contrariamente à justiça e à própria convicção. Por medo do imperador, entregou aos judeus o sangue de Jesus, mas para a própria consciência não tinha senão água, que fez derramar sobre as mãos, exclamando: “Sou inocente do sangue deste Justo, respondereis por Ele”.

– Não, Pilatos, tu és responsável, pois que O dizes Justo e Lhe derramas o sangue; és o juiz injusto, sem consciência. O mesmo sangue de que queria lavar as mãos e de que não podia lavar a alma, os sanguinários judeus chamaram-nO sobre si e seus filhos, amaldiçoando-se a si mesmos. O sangue de Jesus, que atrai a misericórdia de Deus sobre nós, fizeram-nO chamar a vingança sobre eles, gritando: “Que o seu sangue caia sobre nós e nossos filhos”.

         Ouvindo esses gritos sanguinários, Pilatos mandou preparar tudo para pronunciar a sentença. Deu ordem para trazer outras vestes solenes e vestiu-as; puseram-lhe na cabeça uma espécie de coroa ou diadema, no qual havia uma pedra preciosa ou outra coisa brilhante; vestiram-no também de outro manto e diante dele levavam um bastão. Foi acompanhado de muitos soldados; oficiais do tribunal iam na frente, transportando uma coisa e seguiam-se escreventes, com rolos de papel e tabuinhas, precedidos por um homem que tocava trombeta.

Assim saiu do palácio para o fórum, onde, em frente ao lugar da flagelação, havia um belo assento elevado, construído de pedras, para pronunciar as sentenças; só depois de pronunciadas desse lugar tinham as sentenças vigor legal. Esse tribunal era chamado Gábata e era um estrado circular, para o qual subiam escadas de vários lados; em cima havia um assento para Pilatos e atrás dele um banco, para outros membros do tribunal.

Muitos soldados cercavam esse tribunal e em parte ficavam nos degraus das escadas. Muitos dos fariseus já tinham ido do palácio de Pilatos ao Templo. Somente Anás e Caifás, com cerca de vinte e oito outros, se dirigiram ao tribunal no fórum, logo que Pilatos começou a vestir as vestimentas oficiais. Os dois ladrões já haviam sido conduzidos ao tribunal, quando Pilatos apresentou Jesus ao povo, dizendo: Ecce homo! O assento de Pilatos estava coberto de uma manta vermelha e sobre essa havia uma almofada azul, com galões amarelos.

         Jesus, ainda vestido do rubro manto derrisório, com a coroa de espinhos na cabeça, as mãos atadas, foi então conduzido pelos esbirros e soldados que O cercavam, entre as vaias do povo, para o tribunal, onde O colocaram entre dois ladrões. Pilatos, sentado no tribunal, disse mais uma vez, em voz alta, aos inimigos de Jesus: “Eis aí o vosso rei!” Eles, porém, gritaram: “Fora! Morra! Crucifica-O!” – Pilatos disse: “Devo então crucificar vosso rei?” – Mas os príncipes dos sacerdotes gritaram: “Não temos outro rei senão o César”.

Então Pilatos não disse mais palavra em favor de Jesus, nem mais Lhe falou, mas começou a pronunciar a sentença. Os dois ladrões tinham sido condenados, já havia mais tempo, à morte na cruz, mas a execução fora adiada para esse dia, a pedido dos Sumos Sacerdotes, porque queriam ultrajar Jesus, crucificando-O entre assassinos ordinários. As cruzes dos ladrões já estavam ao lado deles, no chão, trazidas pelos ajudantes dos carrascos. A Cruz de Nosso Senhor ainda não estava lá, provavelmente porque a sentença ainda não fora pronunciada.

         A Santíssima Virgem, que se tinha afastado depois da apresentação de Jesus por Pilatos e da gritaria sanguinária dos judeus, abriu caminho, em companhia de algumas mulheres, por entre a multidão e aproximou-se do tribunal, para ouvir a sentença de morte, proferida contra seu Filho e Deus; Jesus estava nos degraus da escada, diante de Pilatos, rodeado de soldados e os inimigos lançavam-Lhe olhares cheios de ódio e escárnio. Um toque de trombeta ordenou silêncio e Pilatos pronunciou, com a raiva de um covarde, a sentença de morte contra o Salvador.

         Senti-me sufocada de indignação, diante de tanta baixeza e duplicidade; o aspecto desse celerado arrogante, do triunfo e ódio sanguinário dos príncipes dos sacerdotes, satisfeitos após tantos esforços fatigantes, o estado lastimoso e os sofrimentos do pacientíssimo Salvador, a indizível angústia e os tormentos da Mãe Santíssima e das santas mulheres, a furiosa ansiedade com que os judeus esperavam a morte da presa, o frio orgulho dos soldados e minha visão das horrendas figuras diabólicas entre a multidão do povo, tudo isso me tinha aniquilado completamente. Ai! Percebi que eu devia estar no lugar de Jesus, meu querido esposo; então a sentença seria justa. Eu estava tão dilacerada pela dor, que não me lembro mais da ordem exata das coisas. Vou contar mais ou menos o que me lembro.

         Pilatos começou por um longo preâmbulo, em que se referiu com os mais pomposos títulos ao imperador Cláudio Tibério. Depois expôs a acusação contra Jesus, que fora condenado à morte pelo Sumos Sacerdotes e cuja crucificação tinha sido unanimemente exigida pelo povo, por ser um rebelde, perturbador da paz pública, violador da lei judaica, por se fazer chamar Filho de Deus e rei dos judeus.

Quando, porém, acrescentou ainda que achava essa sentença justa, - ele que por várias horas continuara a declarar Jesus inocente, quase não pude conter-me mais, à vista desse homem infame e mentiroso. Ele disse ainda: “Por isso condeno Jesus Nazareno, rei dos judeus, a ser pregado na Cruz”. Depois deu ordem aos carrascos que fossem buscar a cruz. Também me lembro, mas não tenho plena certeza, que ele quebrou uma vara comprida, cuja metade era visível e lançou os pedaços aos pés de Jesus.

         A essas palavras a Mãe de Jesus caiu por terra sem sentidos e como morta; agora então estava decidida, era certa a morte de seu santíssimo e amantíssimo Filho e Salvador, morte horrível, dolorosa, ignominiosa. As companheiras e João levaram-na para fora da multidão, para que aqueles homens cegos de coração não pecassem, insultando a dolorosa Mãe do Salvador; mas Maria não podia deixar de seguir o caminho da Paixão de Jesus; as companheiras viram-se obrigadas a levá-la outra vez de lugar em lugar; pois o culto misterioso de unir-se-Lhe nos sofrimentos impelia a Santíssima Mãe à oferecer o sacrifício de suas lágrimas em todos os lugares onde o Redentor, seu Filho, sofrera pelos pecados dos homens, seus irmãos; e assim a Mãe do Senhor consagrou com as lágrimas todos esses santos lugares e tomou posse deles para a futura veneração pela Igreja, Mãe de todos nós, como Jacó erigiu uma pedra e, ungindo-a com óleo, consagrou-a em memória da promissão, que ali recebera.

         A sentença foi escrita, mesmo no tribunal, por Pilatos e copiada mais de três vezes, por aqueles que lhe estavam atrás. Enviaram vários mensageiros, porque alguns dos documentos precisavam ser assinados por outras pessoas; não me lembro se esses documentos faziam parte da sentença ou se eram outras ordens. Contudo foram também alguns desses documentos levados a lugares distantes.

Havia, porém, ainda outra sentença, escrita por Pilatos mesmo e que lhe provava claramente a duplicidade; pois tinha teor totalmente diferente da sentença que pronunciara; vi como a escreveu contra a vontade, com o espírito atormentado e um anjo irado a dirigir-lhe a mão. Esse documento, de cujo conteúdo tenho apenas uma lembrança vaga, dizia mais ou menos o seguinte:

“Compelido pelos Sumos Sacerdotes e o Sinédrio e ameaçado por uma iminente insurreição do povo, que acusavam Jesus de Nazaré de agitação contra a autoridade, de blasfêmia e de desprezo da lei judaica, exigindo-Lhe a morte, entreguei-lhes o mesmo Jesus, para ser crucificado, não tanto movido pelas acusações, que em verdade não achei fundo, não tanto movido pelas acusações, que em verdade não achei fundadas, mas para não ser acusado perante o imperador, de favorecer a insurreição e negar justiça aos judeus. Entreguei-O porque exigiram com violência a morte, como transgressor da lei; e com Ele dois ladrões, já antes condenados, cuja execução fora adiada por maquinações dos judeus, porque queriam que fossem executados junto com Jesus”.

         Nesse documento, pois, escreveu o malvado um relatório totalmente diferente. – Depois escreveu ainda a inscrição da cruz em três linhas, com verniz, sobre uma tabuinha de cor escura. O documento em que Pilatos desculpava a sentença, foi copiado várias vezes e enviando a diversos lugares.

Os Sumos Sacerdotes discutiram ainda com Pilatos no tribunal; não estavam contentes com a sentença, queixando-se sobretudo porque tinha escrito que eles haviam exigido o adiamento da execução dos ladrões, para que fossem executados com Jesus; contestaram também o título de Jesus: queriam que escrevesse “que se declarou rei dos judeus” e não simplesmente “rei dos judeus”.

Mas Pilatos perdeu a paciência, tratou-os com arrogância, gritando furioso: “O que escrevi, fica escrito”. Ainda insistiram, dizendo que a Cruz de Jesus não devia ficar mais alta que as dos ladrões; era preciso, porém, fazê-la mais alta, porque, por um erro dos operários, ficara mais curta a parte de acima da cabeça, não cabendo o título escrito por Pilatos; esse protesto contra o alongamento da cruz era apenas um subterfúgio, para evitar a inscrição, que lhes parecia injuriosa.

Mas Pilatos não cedeu e assim foram obrigados a alongar a cruz, adaptando-lhe uma peça de madeira, à qual se pudesse fixar o título. Assim concorreram várias circunstâncias para dar à cruz aquela forma significativa, que sempre lhe tenho visto, isto é, com os braços um pouco elevados, como os galhos de uma árvore, os quais, ao sair do tronco, se estendem para cima; tinha a forma da letra Y, com a linha do centro alongada por entre os braços. Os dois braços eram mais finos do que o tronco e estavam embutidos nesse, sendo os encaixes reforçados de ambos os lados, por uma cunha fincada por baixo. Como, porém, o tronco acima da cabeça, por um erro, tivesse saído curto demais para se fixar bem visível a inscrição de Pilatos, foi preciso ajustar mais uma peça ao tronco. No lugar dos pés pregaram um pedaço de madeira, para os sustentar.

         Enquanto Pilatos pronunciava a sentença injusta, vi Cláudia Prócula, sua mulher, remeter-lhe o penhor e separar-se dele Na mesma noite fugiu ocultamente do palácio e foi para junto dos amigos de Jesus, que a levaram a um esconderijo, num subterrâneo da casa de Lázaro, em Jerusalém. Vi também um amigo de Jesus gravar, numa pedra esverdeada atrás do tribunal do Gábata, duas linhas, que diziam respeito a sentença injusta de Pilatos e à separação da mulher do Procurador; ainda me lembro das palavras “judex injustus” e do nome “Cláudia Prócula”.

         Mas não me recordo se foi no mesmo dia ou alguns dias mais tarde; lembro-me apenas que nesse lugar do fórum estava um numeroso grupo de homens conversando, enquanto o outro homem, encoberto por eles, gravou aquelas linhas, sem ser visto. Vi que aquela pedra ainda está, desconhecida embora, em Jerusalém, nos alicerces duma casa ou duma Igreja, situada onde antigamente era o Gábata. Cláudia Prócula tornou-se cristã e depois de se ter encontrado com S. Paulo, tornou-se-lhe amiga dedicada.

         Pronunciada a sentença, enquanto Pilatos escrevia e discutia com os Sumos Sacerdotes, era Jesus entregue aos carrascos; antes houvera ainda algum respeito ao tribunal, mas depois estava o Divino Mestre inteiramente à mercê desses homens abomináveis. Trouxeram-Lhe a roupa, que Lhe tinham tirado para escarnecê-Lo em casa de Caifás; força guardada e parece-me que também fora lavada por gente compassiva, pois estava limpa.

Creio também que era costume entre os romanos levar os condenados à execução, vestidos de sua própria roupa. Despiram de novo Jesus: desataram-Lhe as mãos, para poder revesti-Lo, arrancaram-Lhe o manto vermelho do corpo chagado, abrindo-Lhe assim muitas feridas. Ele mesmo vestiu, com mãos trêmulas, a faixa em torno da cintura e os carrascos lançaram-Lhe o escapulário sobre os ombros.

Como, porém, a coroa de espinhos fosse muito larga para deixar passar-Lhe pela cabeça a túnica sem costura, que Lhe fizera a Virgem Santíssima, arrancaram-Lhe a coroa e todas as feridas começaram a sangrar, com indizíveis dores. Depois de Lhe porem a túnica sobre as feridas do corpo, vestiram-nO da veste larga de Lã branca, que cingiram com a faixa larga e puseram-Lhe finalmente o manto. Feito isso, amarraram-nO novamente com o cinturão, munido de pontas de ferro, no qual estavam presas as cordas para conduzi-Lo. Durante todo esse tempo batiam e empurravam-nO, tratando-O com atroz crueldade.

         Os dois ladrões estavam um ao lado direito, outro ao lado esquerdo de Jesus; tinham as mãos amarradas e pendia-lhes, como a Jesus diante do tribunal, uma cadeia de ferro do pescoço. Vestiam apenas um pano na cintura e um gibão semelhante a um escapulário, de fazenda ordinária, sem mangas e aberto nos lados; na cabeça tinham bonés, tecidos de palha, que se pareciam com barretinhas estofadas de crianças. A pele dos ladrões era de um pardo sujo, coberta de cicatrizes, causadas pela flagelação passada. Aquele que se converteu depois, já estava calmo e pensativo; o outro, porém, irritado e impertinente, unindo-se aos carrascos para insultar e amaldiçoar Jesus, que os olhava a ambos com olhos cheios de caridade e desejo de salvá-los, oferecendo também por eles todos os seus sofrimentos.

         Os carrascos estavam ocupados em juntar todas as ferramentas; preparavam-se para a triste e terrível marcha, em que o nosso amado e doloroso Salvador quis carregar o peso dos pecados de nós todos, homens ingratos e para os expiar, ai derramar o santíssimo Sangue do cálice de seu Corpo, transpassado pelos homens mais abomináveis.

         Anás e Caifás terminaram afinal a discussão acalorada com Pilatos; receberam algumas tiras compridas ou rolos de pergaminho, com cópias dos documentos e dirigiram-se apressadamente ao Templo; e só por pouco não chegaram tarde.

         Então se separaram os Sumos Sacerdotes do verdadeiro Cordeiro pascal; correram ao Templo de pedra, para imolar e comer o cordeiro simbólico e a realização do símbolo, o verdadeiro Cordeiro de Deus, fizeram-nO conduzir por vis carrascos ao altar da cruz. Separaram-se ali os dois caminhos, dos quais um conduzia ao símbolo e outro à realização do Sacrifício; abandonaram o Cordeiro de Deus, a pura Vítima expiatória, que tentaram macular exteriormente e insultar com todo o horror da perversidade, entregaram-nO a carrascos ímpios e desumanos e correram ao Templo de pedra, para imolar cordeiros lavados, purificados e bentos.

Haviam tomado todo o cuidado para não se sujarem exteriormente e tinham as almas todas sujas, transbordantes de ódio, inveja e ultrajes. – “Que o seu sangue caia sobre nós e nossos filhos”, tinham exclamado e com essas palavras cumpriram a cerimônia, impuseram a mão de sacrificador sobre a cabeça da vítima. Separaram-se ali os dois caminhos, que conduziam ao altar da lei e ao altar da graça.

Fonte: Extraído do Livro "Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus - Anna Catharina Emmerich - Ed. MIR.

VISÕES DE ANNA CATHARINA EMMERICH, As Visões da Irmã Ana Catarina Emmeric